O bestiário, ou Cortejo de Orfeu (Le Bestiaire, ou Cortège d’Orphée), Guillaume Apollinaire: 1-5
(1)
Orfeu
Admirai o poder singular
E a nobreza da estirpe sem par:
Ela é a voz que a luz fez ouvir
Que o Trimegisto no Pimandro põe-se a discutir.
(2)
A tartaruga
Ó delírio da Trácia encantada!
Com mãos firmes a lira é tocada.
Ponho os animais em procissão
Ao som da tartaruga, da canção.
(3)
O cavalo
Formais e rijos, meus sonhos sabem pôr-te a cavalgar
Belo cocheiro, meu destino em carro d’ouro a te levar
Por tesas rédeas, domando a fera agitação
Dos versos meus, que a toda poesia impõem padrão.

(4)
A cabra do Tibete
A pelagem dessa cabra não,
Ou da que fez penar Jasão,
Tão amoroso preço têm
Quanto as tranças que me retêm.

(5)
A serpente
Persegues com ferocidade
O belo, e quantas em verdade
Vitimou tua crueldade!
Cleópatra, Eurídice, Eva,
Mais de uma sei que enviaste à treva.

Notas
Pimandro: Segundo livro dos Corpus hermeticum, conjunto de tratados atribuídos Hermes Trimegisto. Logo ao início do tratado, Pimandro se apresenta como “o intelecto (nous) do Divino”.
Tartaruga: Diversas lendas reportam a origem da lira como construída a partir do corpo da tartaruga; com efeito, a caixa acústica da lira grega era feita com o casco da tartaruga.