Um sorvete pandêmico

Recentemente anunciei o lançamento do volume haicais de um país pandêmico. A ilustração da capa foi concebida pelo artista plástico gaúcho Gabriel Garavello; cooperamos também na criação do design da capa.
Confesso que foi uma satisfação muito grande ver a ilustração finalizada; ao conversar com o artista sobre seu processo criativo, pude perceber o quão cuidadosamente foi elaborada, tendo em vista o volume ao qual seria anteposta. Isso me fez querer comentar um pouco acerca das escolhas conscientes de Garavello, e complementá-las com alguns comentários pessoais.

A receita do sorvete pandêmico (ou Sorvid) seguiu de perto a temática do volume: estruturalmente, a composição foi calcada no número três—as três bolas do sorvete, a casquinha triangular—, em relação direta com o número de versos do haicai; tematicamente, a superficialmente bem-humorada símile plástica—que transforma o vírus em sorvete e as valas serialmente abertas num biscoitinho—inverte o processo surrealista de transformar seres vivos em imagens da morte, tal como o vemos entre as ilusões de ótica de Salvador Dali.

Também guarda o mesmo tipo de tensão irônica que poderíamos ver na violência dos desenhos animados: se animações em preto e branco transformavam caveiras em xilofones para musicar uma coreografia cadavérica, vivificando a morte, algumas décadas mais tarde, em nome do mesmo prazer, desenhos piadisticamente pautados na rivalidade transformaram cães, gatos, ratos e pessoas em violoncelos, pinos de boliche, vasos, tapetes, mesas de centro, etc. A metamorfose que fascinava as audiências dos primeiros desenhos toma agora por base a violência como seu processo motor.



Não menos metamórfico, o sorvetinho de corona tematiza a produção em série—dos sorvetes, das valas—em nome do prazer, em nome da continuidade mesma dos processos produtivos, que insere a dor e a morte (também serializadas pela pandemia e seu ingerente enfrentamento) na linha de montagem do gozo capitalista. Assim, a aparente despretensão, a leveza e suavidade aquarelada dos tons escondem, em seu processo de composição, os horrores banalizados em nome da produção serial de prazeres do “novo normal”.
Garavello ainda comenta sobre uma especificidade do sorvete de casquinha, que o torna peculiarmente apto a tematizar nosso momento atual: não costumamos consumi-lo em casa, mas em sorveterias; o prazer do sorvete de casquinha é público e coletivo. Ao sairmos de nossas casas e baixarmos nossas máscaras para a alimentação como um ato de socialização, revelamos mais do que nossos rostos; desnudamos a introjeção dos valores de um “novo normal” que não admite ser interrompido nem pela Morte.


