xícaras sujas
Certo casal havia cujas brigas não raras advinham de deixar as xícaras sujas.
Casal havia cujas
brigas não raras
advinham de deixar as
xícaras sujas.
Matinais testemunhas das primeiras delícias das núpcias, eis à pia duas chávenas de apressado café, no apartamento recém pronto, no dia seguinte à mudança. Rumo ao trabalho, deixaram-nas aí para mais tarde. Entre os hábitos, porém, descobertos um do outro apenas nesse mais apertado convívio, repara a esposa que o companheiro—que abaixava o tampo do sanitário, não apertava o dentifrício ao meio e lavava e passava as roupas—não lavava xícaras. Nojinho, brincava ele, infantilizando o deslize. Relataram-lhe amigas que os respectivos consortes pouco ou nada faziam em casa; viam-se, porém, como bons esposos, pois “ajudavam”. Não estava, porém, a esposa para meias-gratidões: se dividiam as contas e as roupas, que também a louça. Confrontara-o amiúde sobre a pequenez do gesto, que, obviamente, crescia em importância: não mais se tratava de lavar uma xícara, mas de se recusar a ouvi-la, quando o que solicitava era tão pouco. Inconformava-se; entristecia-se; emputeceu-se, enfim. Parou também de lavar as xícaras. Empilhavam-se sobre a pia, até não haver xícara alguma. Manteve-se firme. Formigas, baratas e mofo vieram-lhe em socorro. Passara a comprar o consorte xícaras; inteira assumira a dívida (tratava-se de despesa semanal) sem jamais mencioná-la nas prestações de contas, sem lhe cobrar um centavo. Mas não as lavava. Redobrando a carga laboral, alugaram o apartamento ao lado, para armazenar as xícaras sujas. Pagavam multas insanitárias pelos problemas que ao condomínio o acúmulo trazia—nunca estiveram tão bem as contas do edifício, graças ao provento regular. Não se falavam mais. Não se tocavam. O olor de antigas imundices empestava os cômodos. Sonhava o esposo contratar um arquiteto, e construir um palácio com as xícaras assim acumuladas. Mas e se, antes de o pôr em pé desde a planta, exigisse o engenheiro que as lavasse?