Censura: entre o pornográfico e o político
Existe uma diferença muito grande de percepção do que haja sido a Ditadura Militar no Brasil entre diferentes setores do povo brasileiro. Os setores ligados às esquerdas tendem a enfatizar a corrupção, a desigualdade social, a falta de liberdade política, as perseguições e torturas, e especialmente a censura—que, para estes setores, tinha por função encobrir tudo isso—; setores ligados à direita ou, simplesmente, menos politizados ou interessados em política (o que equivale a dizer que, sem se inteirarem, endossam uma ideologia mais à direita) costumam pensar no período como um período de “ordem”.
Tempos atrás, ocorreu-me pensar de que modo diferentes representações de uma das marcas mais características das ditaduras—a censura—, ao enfatizarem diferentes seus aspectos, contribuem para este abismo de percepções. Creio que há duas confusões importantes quando se fala em censura: por um lado, entre censura propriamente dita e classificação etária e, por outro, entre os dois maiores alvos da censura, o pornográfico e o político.
No primeiro caso, é importante lembrar que a censura não somente determinava conteúdos, mas horários de exibição; o aviso que antecedia aos programas deixava clara esta função: “Este programa foi liberado pela censura federal e aprovado para este horário.” O sistema de classificação etária, ou, mais propriamente, o sistema de classificação indicativa (Classind), criado em 1990, tem por objetivo alertar responsáveis legais que determinados programas podem ser inadequados para determinados públicos; não se trata de censura, de forma alguma, uma vez que fica à discrição dos responsáveis permitir ou não que crianças e adolescentes assistam ao conteúdo.
Não vou me aprofundar na eficiência deste sistema, ou seja, em seus critérios de seleção de conteúdos impróprios; não os conheço, e foge ao escopo desta reflexão uma investigação mais aprofundada. Não obstante, minha impressão pessoal é sempre a de que o co-texto dos programas é ignorado em prol de determinados “ganchos”. A censura aos seios—contra a qual, em redes sociais tais como o Facebook, criou-se a campanha #FreeTheNipple (liberem os mamilos)—é um excelente exemplo: campanhas sobre prevenção de câncer de mama e sobre aleitamento materno, em si absolutamente nada pornográficas, recebem o mesmo tipo de censura que programas que tratam os seios como zona erógena, o que indica que a “impropriedade” percebida se deve ao significante (o seio), não à cadeia de significados (o contexto, a representação). Recentemente, questionou-se o fato de dois participantes de um reality show veiculado por emissora ligada à Igreja Universal do Reino de Deus se engajarem em ato sexual explícito, que foi veiculado em rede nacional, pois os órgãos sexuais não são visíveis (salvo descuido). Coincidências à parte, o Facebook, não é o Classind; como alguém que há anos perdeu o hábito de ver televisão, não poderia realizar a transferência de julgamentos sem injustiça.
De toda forma, creio que os dois sistemas de regulação estatal de conteúdos podem ser confundidos, de modo que, para setores menos politizados, pareça haver pouca diferença entre censurar e classificar. Esta confusão, como talvez possa ser inferido do que se disse acima, é motivada pela segunda confusão de que falei: entre os conteúdos a serem censurados ou classificados.
Salvo engano meu, o Classind visa sobretudo a violência e, principalmente, o conteúdo de natureza sexual. A censura também visava à pornografia, e seu controle de horários, em parte, era destinado a liberar conteúdo impróprio apenas “para menores”. Assim sendo, a censura também realizava uma forma de classificação etária no tangente à violência e à pornografia. Os dois sistemas coincidem parcialmente.
E eis aí o ponto que me parece central: ao encarregar-se do pornográfico, a censura consegue distorcer a ênfase na representação de suas funções. Esta é uma impressão de infância, pessoal, mas que imagino possa ser compartilhada: em criança, nunca relacionei a censura ao político, e sim ao sexual. As esquerdas freqüentemente lançam mão da metáfora da “receita de bolo”—referindo-se à prática de substituir apressadamente conteúdos jornalísticos censurados por conteúdo banal, absurdamente fora do escopo jornalístico—, mas esta é uma representação de resistência, que circula entre determinados grupos. A censura nunca chamou atenção para si mesma neste sentido: classificava o pornográfico, suprimia o político; no primeiro caso, fazia menção a si mesma; no segundo, seria contra seus interesses informar algo do tipo: “Este programa continha informações que foram vetadas pela censura federal.” A auto-representação da censura, portanto, ligada aos momentos em que era estrategicamente inofensivo mencionar-se a si mesma, ligou-se ao erótico.
Daí a importância, creio, da transeccionalidade no debate político: gênero, classe e raça não podem ser dissociados de uma crítica a regimes totalitários. Ao encarregar-se explicitamente do explicitamente erótico, a censura encobria sua principal função: proibir a divulgação conteúdo de natureza política que atacasse o regime militar. No imaginário popular, a censura se refere “à moral e aos bons costumes”, não à “corrupção”. A estratégia em nada difere da que se vê nos regimes autoritários que perseguem minorias—os judeus do Terceiro Reich, os imigrantes nos Alaranjados Unidos, as comunidades negras, indígenas e a população LGBTQIA+ num Brasil não menos laranja. Assim, a dissenção entre “trabalhismo”, de um lado, e “pautas identitárias”, no outro—dissenção essa por vezes presente nos setores de esquerda—reproduz, no interior das esquerdas, as cortinas de fumaça geradas pelos regimes opressores. É preciso que seja superada, e que se compreenda como os espectros de raça e sexualidade são perseguidos tendo-se sempre em vista mascarar a opressão economicamente rentável: a de classe.