Duas recusas: Sally Rooney e Daniel Costa
A escritora irlandesa Sally Rooney se recusou a vender os direitos de seu mais recente romance Beautiful World, Where Are You (Belo mundo, onde você está, em tradução brasileira lançada pela Cia das Letras em 2021) a duas editoras israelenses. A decisão advém do endosso à causa Palestina e ao Boycott, Divestment and Sanctions (BDS) Movement.
Rooney declarou ainda que os direitos para tradução de sua obra ao hebraico ainda estão disponíveis e que, se for possível traduzi-la sem desrespeitar o movimento pela libertação da Palestina, será uma honra.
A decisão partilha dos princípios do movimento ao qual endossa, boicotando simbólica, cultural e financeiramente um governo que vem promovendo políticas descritas como apartheid ou genocídio. Trata-se de rechaçar não uma língua, mas as implicações econômicas de adentrar determinado mercado editorial. Rooney junta-se assim a uma expressiva lista de artistas e empresas que se recusaram a fazer shows ou negócios em território israelense.
Também aponta a importância de se pensar na não-tradução como uma estratégia de resistência tradutória. Seu caso talvez mereça comparação com outro, brasileiro: em 2020, o romancista conservador canadense Gran Patterson moveu um processo contra a Fonte Editorial, que publicou no Brasil tradução de dois de seu romances—Southern Cross e Back in Slolwy, seqüência ao primeiro—por Daniel Costa; o tradutor foi acusado de inserir “trechos petistas“ nas narrativas, alterando suas falas e comprometendo sua integridade estrutural e ideológica. Pelo que consigo averiguar sem acesso direto aos romances, nenhum deles versa diretamente sobre a história política recente do Brasil, embora, como romances policiais, façam-lhe as menções emendadas pelo tradutor.
A tradução panfletária de Costa foi não menos panfletariamente comentada por Mauricio Meirelles, para a Folha de São Paulo; Meireles, dentre outras coisas, não oferece os títulos em português das traduções—como estas foram retiradas de circulação, não consegui localizá-los.
Apesar de sua nada disfarçada defesa do direito ao conservadorismo, Meireles cita a justificativa de Costa para suas inserções tradutórias: tachando de alienado o autor, afirma que deveria agradecê-lo, como intelectual, pelas dicas.
(Talvez a Meireles interessasse saber que não apenas os “petistas” mutilam obras; Cristiane Nord, num artigo versando precisamente sobre lealdade e fidelidade em tradução, menciona o exemplo da tradução para o alemão de En Cuba (1972), do escritor nicaragüense Ernesto Cardenal, que descreve mui elogiosamente o regime de Fidel Castro; ao ser traduzido na Alemanha Ocidental, “a tradutora omitiu ou, no mínimo, abrandou a maioria das asserções mais positivas e emocionalmente carregadas sobre a Cuba pós-revolução, a Fidel Castro ou à Revolução Cubana, bem como os comentários depreciativos sobre os Estados Unidos e seus representantes, como o embaixador estadunidense” (Nord, 2006, p. 34; minha tradução). É importante ressaltar, aqui, que a tradutora foi instruída pelo editor. Fico curioso para saber se Meireles seria igualmente feroz ao descrever este exemplo de mutilação ideológica.)
Os casos de Rooney e Costa partilham a recusa a endossar uma visão política (o sionismo, o olhar anglófono sobre o Brasil) e certa motivação contra-hegemônica ligada a um pensamento mais propriamente reconhecido como de esquerda; não obstante, talvez devam ser aproximados por suas diferenças: de um lado, uma autora; do outro, um tradutor; alguém que recusa uma oferta tradutória como cliente, e alguém que a aceita como prestador de serviços; alguém expressando a própria opinião, e alguém responsável por mediar a opinião de terceiros junto a um novo público; alguém com controle autoral (ou seja, legal) sobre a própria obra, e alguém relegado à posição de vender sua força de trabalho como freelancer, sem mais direitos que o pagamento e o vago direito moral de ser reconhecido como tradutor; alguém que tem, e alguém não parece ter direito à voz.
Costa, pelo que pude perceber nas comunidades de tradutores às quais pertenço, foi duramente rechaçado pelos colegas de profissão, mas creio que a aproximação com o caso da romancista irlandesa nos mostra que compreender sua atitude é mais amplo e complexo do que simplesmente criticá-lo por suas inserções: que direito real teria um freelancer num país com índices crescentes de desemprego a recusar uma oferta de trabalho? Que direito teria de questionar a necessidade mesma de fazer veicular no Brasil uma visão conservadora do país romanceada por um estrangeiro—especialmente, levando-se em conta o momento histórico delicado na qual é gerada e traduzida—? Que direito teria de solicitar que a editora lhe encomendasse outras traduções ao invés dessas? Que direito teria a espaços periféricos de expressão como prefácios, posfácios ou notas de rodapé, onde pudesse deixar claras suas divergências com o autor? Sem saber quais outras possibilidades reais de ação teria o tradutor, criticá-lo por lançar mão de um recurso de resistência tradutória—algo que os Estudos de Tradução adoram alardear—é, no mínimo, precipitado.
Confrontados com uma mesma urgência política—a resistência a regimes opressores—, a romancista irlandesa e o autor tradutor brasileiro tiveram atitudes diversas, que derivam das diversas limitações atuantes sobre uma e outro. Como mediadores atuando muitas vezes como freelancers, profissionais da tradução têm mais limitado escopo de atuação política, e sua voz—apesar de certo entusiasmo mais propriamente teórico—não será ouvida sem risco de sua reputação profissional.