a história não é uma estátua
A 25 de maio do corrente, George Floyd foi assassinado pelo policial Derek Chauvin em Minnesota (Estados Unidos); Chauvin fincou-lhe o joelho ao pescoço, e se recusou ouvir a sua queixa de que não conseguia respirar. Filmada e viralizada a cena, o assassinato de Floyd pelas mãos de um policial desencadeou uma onda de protestos, alguns dos quais voltaram-se contra monumentos públicos.
Em Bristol (Inglaterra), no dia 07 de junho, a estátua do mercador de escravos Edward Colston foi derrubada e jogada nas águas do porto; uma semana antes, em Antuérpia (Bélgica), uma estátua do Imperador Leopoldo II havia sido vandalizada; nos dias 09 e 10 de junho, estátuas de Cristóvão Colombo foram acossadas durante manifestações nos Estados Unidos: em Minneapolis, a estátua erigida em Byrd Park foi derrubada, incendiada e jogada num lago; na madrugada do dia 10, em Boston, outra estátua de Colombo foi decapitada.
Em meio a essa onda de protestos voltando-se contra símbolos racistas e colonialistas publicamente expostos, a HBO Max anunciou que retiraria temporariamente Gone With the Wind (E o vento levou, 1939) de sua programação; a emissora declarou que o filme retornará acrescido de “material adicional discutindo as caracterizações racistas dos escravos trabalhando em plantações”. Curiosamente, o filme também representa um controverso marco na história do Movimento Negro: Hattie McDaniel, intérprete da serviçal Mammy, foi a primeira atriz negra a ganhar um Oscar; já à época, entidades como a NAACP criticavam a participação de atrizes e atores negros em filmes que reforçavam estereótipos racistas; a atriz defendeu-se: “Why should I complain about making $700 a week playing a maid? If I didn’t, I’d be making $7 a week being one.” (Por que me queixaria de ganhar US$700 por semana interpretando uma doméstica? Se não o fizesse, estaria ganhando US$7 como uma.) A relação de McDaniel com o Movimento Negro seguiria controversa ao longo de sua carreira.
A supracitada onda de protestos antirracistas não veio sem retaliação: a estátua do ator, poeta e dramaturgo jamaicano Alfred Fagon—o primeiro homem negro a ter uma estátua erigida em Bristol—foi encontrada coberta de um líquido aparentemente corrosivo a 12 de junho.
Voltar-se contra estátuas representativas de valores contrários àqueles por que dado grupo se manifesta não é novidade; como vemos acima, grupos ideologicamente aliados tanto às esquerdas quanto à direita já foram flagrados pichando, derrubando e destruindo estátuas de seus desafetos. Esta forma de protesto tampouco se limita aos cidadãos: governantes—membros da situação ou da oposição—também fazem uso de vias legais (nem sempre pacíficas) para apagar monumentos. Numa primeira tentativa de buscar informações mais precisas sobre os supracitados casos, acabei encontrando outros exemplos recentes:
Em 201 7 e 2108, na Carolina do Norte (EUA)—um dos estados pertencentes ao que se chama de Bible belt, ao sudeste dos Estados Unidos—, manifestantes solicitando a remoção de estátuas dos confederados de logradouros públicos acabaram por levá-las ao chão. Em 2018, outra estátua de Colombo foi derrubada de Grand Park (Los Angeles EUA).
Também em 2107, em Rosario de Perijá (Venezuela), após mais de um mês de conflitos entre manifestantes contrários ao regime de Nicolás Maduro e o exército, uma estátua do ex-presidente Hugo Chávez foi destruída. Quase uma década antes disso, em 2009, o próprio Chávez mandava retirar de Caracas uma estátua de Colombo, num esforço presidencial de apagar das ruas da Venezuela qualquer homenagem ao genocídio colonial.
Em 2016, em Barcelona (Espanha), a retirada de uma estátua de Cristóvão Colombo foi de fato proposta pelo partido de esquerda CUP, que pedia que fosse substituída por outra, celebrando a resistência indígena à colonização.
Em 2015, o Estado Islâmico divulgou um vídeo em que combatentes destroem estátuas milenares de origem mesopotâmica no Museu de Mossul (Iraque), representativas da religião e da cultura dos povos assírio e acádio.
Quando não são os governos diretamente responsáveis por tais eventos, suas reações são variadas, oscilando entre o desalinho e o endosso ideológicos. Em 2017, após o primeiro incidente na Carolina do Norte, o presidente dos Estados Unidos declarou que a remoção das estátuas destruía um pedaço da história estadunidense; frente aos protestos ocorridos este ano, mostra-se relutante em renomear bases militares homenageando soldados confederados. Também reagindo aos protestos ocorridos em junho deste ano, e em consonância com os mesmos, a presidenta do Senado estadunidense, Nancy Pelosi, pediu que fossem removidas do Capitólio as estátuas de líderes e soldados confederados. O prefeito da cidade de Bristol, Marvin Rees, demonstrou-se favorável à derrubada da estátua do mercador de escravos; segundo o prefeito, deverá ser enviada a um museu—tal como a de Leopoldo II, acima mencionada, retirada de logradouro público pelas autoridades locais.
Finalmente, o caldo do debate é engrossado pelas manifestações de figuras públicas e anônimas. O hexacampeão mundial de Fórmula 1 e ativista do movimento negro Lewis Hamilton usou seu Instagram para solicitar a retirada pacífica de símbolos racistas de logradouros públicos. Uma iniciativa de colaboração coletiva intitulada Topple the Racists (Derrube os racistas), está gerando um mapeamento de todos os monumentos que fazem apologia à escravidão e ao racismo no Reino Unido: em sua página inicial, o movimento declara desejar contribuir com o debate, e atribui às autoridades a responsabilidade de decidir sobre os tipos de monumentos que desejam nas áreas públicas das cidades.
No Brasil a ressonância dos protestos antirracistas gerou discussões em redes sociais sobre quais momentos deveriam ser derrubados ou retirados de praças públicas; logo após os primeiros incidentes, surgiu ao menos uma lista de monumentos que poderiam ser removidos—a maioria dos quais homenageando os Bandeirantes. Da lista, destacam-se o monumento a Borba Gato (Santo Amaro, SP) e o Monumento às Bandeiras, do escultor ítalo-brasileiro Victor Brecheret (São Paulo, SC), que já haviam sido pichados em 2016. A obra de Brecheret chama especial atenção, sendo um marco da escultura modernista no Brasil.
Arrolar todos estes exemplos pode fazer parecer que são iguais, e que talvez mereçam o mesmo tipo de reação; não é verdade: é necessário desbastá-los para compreender melhor que tipo de reação seria cabível frente a cada um.
A primeira diferença significativa está no tipo de ato: uma estátua pode ser pichada, derrubada, parcial ou inteiramente destruída. Dentre os exemplos acima, algumas das estátuas derrubadas serão destinadas a museus; outras, foram destruídas dentro de museus. Algumas foram cobertas de tinta, e podem ser restauradas; outras, foram atacadas com líquidos corrosivos. Destruir ou desfigurar além de reparo são ações congeniais a regimes autoritários—aqueles que não somente controlam com mão firme as informações atuais que circulam entre a população, mas também buscam alterar e apagar a memória do passado. As esquerdas—que abraçam princípios humanistas, e que muitas vezes tratam a história como uma espécie de paraíso dos ateus, lembrando a tiranos, golpistas, fascistas e usurpadores quão implacável lhes há de ser Clio—provavelmente deveria evitar atitudes mais destrutivas.
O blogue Não me Kahlo, a propósito, publicou no dia 9 de junho um artigo intitulado Porque devemos derrubar estátuas de racistas, que afirma:
A ideia de que esses monumentos devem ser preservados como objetos de estudo e reflexão ou por serem parte do “patrimônio histórico” é mentirosa. Essas estátuas podem ir para museus, por exemplo, onde, aí sim, podem ser estudadas em visitas guiadas. Na cidade, elas são homenagens. São discursos de ódio.
Note-se que, apesar da inflamada força com que aprova os protestos desde o título, não nega às estátuas em questão espaço em museus. É seu caráter de homenagem pública que incomoda, não necessariamente sua existência.
A segunda diferença importante está nos executores do ato: pode ser uma ação popular (organizada ou não por grupos ativistas) ou uma iniciativa governamental. As ações populares costumam seguir-se a períodos prolongados de opressão e sofrimento, bastando algum tipo de estopim—como foi o assassinato de Floyd—para que algo aconteça. Inicialmente, poderíamos pensar que, em alguns casos, seria difícil conter ações mais extremadas, mas é fato que estas manifestações populares costumam ser pacíficas. Relatos de depredação são muitas vezes são vistos com suspeição, posto que uma população que vai às ruas desarmada não teria como magicamente produzir os paus e pedras que quebram as vidraças—estas inocentíssimas, tão defendidas pelos conservadores. Voltar-se contra uma estátua, em todo caso, é sempre melhor que voltar a mão contra outros seres humanos: antes destruir uma estátua de Lutero ou do Papa que promover outra Noite de São Bartolomeu. Governos, via de regra, não erguem a mão de maneira violenta contra monumentos públicos—embora possam, por iniciativa própria, removê-los—, a menos que se trate de regimes menos democráticos, mais autoritários: aos governos, cabe o papel de mediar entre as representações da memória coletiva e os desejos populares, não o de legislar acerca do que se hão ou não de lembrar os cidadãos.
A terceira diferença, quando se trata de manifestação popular, está no tipo de reação governamental. Mesmo gestores públicos mais simpáticos aos movimentos parecem inclinados à remoção não-destrutiva, à restauração e realocação das peças em museus. Governos indiferentes às demandas populares tendem a tratar esse tipo de manifestação com descaso. (Parecerá surpreendente que um homem como Donald Trump mencione a história para negar a legitimidade dos movimentos revisionistas de extração popular, se não lembrarmos que a história à qual vindica é a versão dos vencedores, a história oficial que apaga as lutas e sofrimentos das classes menos favorecidas, racionalizando sua exploração.)
Finalmente, existe uma diferença silenciosa entre aquilo que se derruba e aquilo que não se pode sequer arranhar. Ao ser inicialmente informado da derrubada das estátuas, minha primeira reação foi pensar: erguem a mão contra estátuas, pois não podem erguê-las contra os bancos. A decisão de se destruir tais artefatos não é devida inteiramente ao livre-arbítrio dos manifestantes, mas também ao leque de possibilidades de demonstração pacífica de descontentamento. Os grandes escravocratas contemporâneos estão ligados ao capitalismo e ao rentismo: salvo engano meu, as autoridades tolerarão muito mais facilmente que uma estátua—que, independentemente do que simbolize, não gera lucro—seja destruída do que uma vidraça de agência bancária. Impossibilitados talvez de agirem contra os verdadeiros símbolos da presente exploração, voltam-se os revoltosos contra a memória da opressão pretérita. Picha-se a o Monumento às Bandeiras porque não se pode implodir o prédio da Fiesp ou uma agência do Bradesco.
De minha parte, e seguindo a linha de raciocínio que me parece ser a das esquerdas (às quais me alinho ideologicamente), respeito e endosso os movimentos e seu clamor por representações da história que não escondam os processos de opressão colonial e racismo, mas sugiro que se combata representação com representação. É certo que as estátuas publicamente dispostas implicam homenagens: nenhuma cidade fala mal de si mesma através da arquitetura e do planejamento urbano; um monumento mantido às custas dos impostos não critica as gestões que o mantêm. Assim, parece melhor solução removê-los destes locais, destinando-os às instituições oficialmente encarregadas da preservação da memória, livres da obrigação de enaltecer ou bajular quem quer que seja.
Ainda assim, não é impossível pensar em modos de se as manter onde estão, destituindo-lhes do caráter de homenagem. Avesso tanto às honrarias escultórias quanto à sua derrubada, o escritor angolano José Eduardo Agualusa, em coluna publicada no jornal O Globo em 2018, à ocasião de um dos supracitados tombamentos, alerta contra o risco inerente a esse gesto:
O que tentamos destruir ao derrubar uma estátua não é a figura de alguém em bronze: é uma filosofia. Acontece que pensamentos, crenças, convicções são sempre mais difíceis de derrubar do que estátuas. Derruba-se uma estátua e anos depois ela reaparece sob a forma de um confuso fantasma, enredado em lodo e em rancor, e, quase sempre, mais perigoso e pernicioso do que o sujeito original e suas ideias.
Propõe ainda o seguinte:
A melhor forma de derrubar ideias más é lançando contra elas ideias boas. Aquela estátua de Colombo no Grand Park, em Los Angeles, deveria ter permanecido no lugar onde foi erguida, não como homenagem a alguém responsável pelo estupro e tortura de povos indígenas, mas como um local de reflexão sobre os crimes cometidos pelo colonialismo europeu.
A sugestão corre o risco de ser reduzida a “deixe-se tudo como está”; relativamente aos eventos deste ano, o artista plástico Banski propôs uma intervenção mais radical, que transforme o monumento antigo em nova obra, celebrando a própria derrubada.
Aos puristas, a sugestão talvez soe radical, uma vez que exige a alteração da estátua anterior; semelhantes alterações, contudo, também fazem parte de nossa cultura, especialmente quando se trata de arquitetura: talvez bastasse lembrar que inúmeros prédios históricos ainda em funcionamento seriam imprestáveis se não se lhes houvessem agregado instalações elétricas e banheiros; mais poeticamente, talvez bastasse lembrar a vítrea, viridíssima reconstrução da Catedral de Notre-Dame após o incêndio em 2019. Mas o exemplo que mais me fascina é justamente o de um museu: o Museu de Hagia Sophia, em Istambul (Turquia) foi fundado na igreja originalmente construída em 537 EC: ao longo de sua história, passou das mãos da Igreja Católica Romana às da Igreja Ortodoxa e do islã; foi igreja e mesquita; foi acrescido de minaretes, teve afrescos apagados e pintados sobre outros; teve de ser parcialmente reconstruído após um terremoto em 558 que fez colapsar a colossal abóbada. Tal como hoje o visitamos, o museu é a construção coletiva de séculos e séculos de ocupação humana da mais diversificada; mais que abrigar a história, é história, justamente pelas intervenções sem as quais não estaria hoje aqui.
Assim, não só a solução de Banski, mas também alguns tipos menos violentos de depredação (como pintar ou pichar) talvez possam ser aceitos como intervenções válidas. Talvez nos esqueçamos de que monumentos não apenas representam a história, mas têm sua própria história; nossos esforços em preservá-los não conseguem abstrai-los a seu existir dentro da história, natural ou humana. Embora seja compreensível que não se deseje a destruição de monumentos, ou que se deseje restringi-la ao máximo, em alguns casos, talvez devamos simplesmente aceitar que alguns monumentos serão necessariamente alterados pelo tempo, visto não com uma força da natureza, mas como motriz da cultura: novas camadas de representação são sobrepostas, conforme mudam as representações ao longo das eras; na maioria dos casos, vêm sob a forma textual, como críticas, estudos, análises; noutros poucos, em momentos extremos, podem vir sob a forma de intervenções diretas. Podemos lastimar o que ocorreu à estátua de Fagon, mas não há dúvidas de que, em havendo sido de fato deteriorada pela ação dos vândalos, continuará a se erguer como monumento antirracista, trazendo agora em si as mesmas marcas de sofrimento que tantos escravos trouxeram sobre seus corpos. Podemos não gostar muito da idéia de que um monumento modernista amanheça colorido—mesmo sabendo dos componentes elitistas no modernismo brasileiro, e portanto de sua controversa apropriação da chamada “cor local” e da cultura popular—, mas talvez seja mais fácil aceitar as novas cores como símbolo dos novos tempos do que despender dinheiro para restaurá-lo a cada vez.
Assim, iniciativas como agregar placas explicativas, erigir monumento vizinhos celebrando valores mais humanistas ou mesmo aceitar algumas intervenções revoltosas podem ser soluções satisfatórias. Seguramente, tais iniciativas cabem aos governos. Diga-se à guisa de conclusão: se não fizessem tantos gestores públicos ouvidos moucos ao clamor popular—se nenhum negro mais morresse vítima da violência sistêmica da polícia, se aos indígenas fosse concedido o direito à terra e à existência—, as estátuas seriam deixadas em paz.