O carrinho de mão vermelho (The Red Wheelbarrow), William Carlos Williams

The Red Wheelbarrow

so much depends
upon

a red wheel
barrow

glazed with rain
water

beside the white
chickens

The Red Wheelbarrow
so much depends

O carrinho de mão vermelho

tanto depende
dum

carrinho de mão
vermelho

que a água da chuva
esmalta

ao lado das brancas
galinhas


Em se tratando de tradução poética, mesmo a simplicidade é traiçoeira. Em sua clássica Oficina de tradução, Rosemary Arrojo exemplificou através do célebre This is Just to Say a dificuldade em se traduzir uma simples palavra (plum, normalmente ameixa), não apenas por seu sentido conotativo, mas principalmente pelo que poderia denotar. Se as plums deliciosamente devoradas do poema não são frutas, mas símbolos, o que simbolizam? Seria possível, mantendo-as ameixas, manter também a gama simbólica que abarcam?

This Is Just To Say
I have eaten

Poderíamos fazer perguntas de igual teor acerca desta outra pérola da simplicidade de William Carlos Williams: o que simbolizam o carrinho de mão, a chuva, as galinhas? Que importância têm as cores—a brancura das aves, o rubor do instrumento—? Quais os dois pólos da relação de dependência apontada: a dependência se limita ao carrinho ou à cena? O que exatamente dependeria do carrinho ou da cena?

Ao traduzir o texto, contudo, não foram estas as questões sobre as quais me debrucei. Talvez possa um tradutor fazer-se inúmeras perguntas, mas bem menor será o número das respostas que alcançará. A principal pergunta a que me ative pertence à ordem, digamos, do artesanal: ao se traduzir, quais dificuldades técnicas são impostas pela simplicidade? Aproximo-me, portanto, não da discussão semântica de Arrojo, mas da promovida por Susan Bassnett em seu Translaion Studies, ao analisar duas traduções para o inglês de Un’altra notte, do sintético poeta italiano Giuseppe Ungaretti.

Giuseppe Ungaretti - Un’altra notte
Antologia minima: Giuseppe Ungaretti, L’allegria (Milano, Preda 1931)

Talvez precisemos esclarecer primeiro o que nos leva a dizer (ou aceitar) que o poema acima é “simples”, sendo que a poesia em si nunca o é. A afirmação, na verdade, é de ordem principalmente morfossintática:

So much depends upon a red wheel barrow, [that is] glazed with rain water, [and that is] beside the white chickens.

O poema é composto por um único período, em ordem direta. Há apenas um verbo flexionado: depends—que toma o pronome so much como sujeito e a red wheel barrow como objeto—; o outro verbo, glazed, é um particípio passado, ou seja, uma forma não-flexionada com valor adjetival.

Lexicalmente, contém dezesseis palavras—quatro por estrofe, sendo a quarta sempre isolada no segundo verso—, nenhuma das quais se repete: sete palavras gramaticais (so, much, upon, a, with, beside, the) e nove itens lexicais plenos (verbo: depends, adjetivos: red, glazed, rain, wheel, white; substantivos: barrow, water, chickens). Predominam os monossílabos (onze); nenhuma palavra passa do dissílabo; quatro dos cinco dissílabos aparecem isolados nos segundos versos de cada estrofe; beside é a única exceção.

É interessante notar aqui que rain e wheel, normalmente considerados substantivos, são adjetivados através de um processo chamado conversão zero (zero conversion), que consiste na mudança de classe gramatical sem derivação morfológica—ao contrário do que ocorre em português quando precisamos, por exemplo, transformar um substantivo em verbo: carimbo> carimbar. Formas recorrentes como wheel barrow e rain water poderiam ser consideradas como unidades—note-se a diferença entre o título do poema e a segunda estrofe—, assim como a forma pronominal so much, mas a divisão por estrofes enfatiza a separação nos dois primeiros casos.

Como se vê, a análise do léxico e da sintaxe levam quase naturalmente à métrica: todos os itens lexicais inegavelmente categorizáveis como substantivos aparecem isolados nos segundos versos de cada estrofe, formando troqueus (ver notas abaixo); estes se opõem ao iambo formado por upon—preposição estranhamente isolada como verso independente. Assim, as segundas estrofes atingem uma regularidade métrica que marca o final de cada verso, e ao mesmo tempo seqüenciam constituintes que uma leitura prosaica do texto tornaria indivisos: depends upon e os conglomerados determinante + pré-modificador (adjetival) + núcleo (e.g. the white chickens). O resultado, se seguidas à risca estas instruções cifradas na forma, é uma leitura pausada, que foca atenção nos elementos centrais—aqueles mesmos gravidamente dotados de valor simbólico central: o carrinho, a água, as galinhas.

(Note-se, contudo, que o próprio poeta foi gravado lendo o poema em mais de uma ocasião, como podemos ouvir aqui, e que sua leitura tende à continuidade da fala, desconsiderando ou minorando pausas entre versos. No mais, as diversas leituras confirmam a análise estrutural aqui adotada.)

Quanto aos primeiros versos de cada estrofe, todos contêm dois acentos métricos, mas sua divisão em pés demonstra menor regularidade. Os primeiros versos das estrofes inicial e final são compostos por iambos perfeitos; os demais são compostos por um báquio e um crético—pés de três sílabas, com duas sílabas tônicas e uma átona. A estrutura acentual resultante parece ditada pela combinação entre sintaxe direta e léxico breve, e não o contrário (pense-se, por exemplo, num pentâmetro iâmbico que lança mão de inversões frasais e seleção vocabular rara para encaixar os acentos regularmente).

E como toda esta simplicidade se traduz ao português? A primeira alteração consiste no aumento do volume de sílabas: wheel barrow (3) > carrinho de mão (5); depends, chickens (2) > depende, galinhas (3); red (1) > vermelho (3). A tradução proposta é invariavalmente mais extensa, e tem de se haver não apenas com o pendor polissilábico do português, mas também com sua tendência às paroxítonas—o que, como veremos afetará a métrica.

Seria possível diminuir o número de sílabas? Talvez, mas a custos: operar a mudança de galinhas para galos ou frangos afeta a semântica, e não estaríamos justificados sem uma análise que sobreponha em importância o acentual ao sintático e ao semântico; se o vermelho se tornar rubro ou rubi, o registro do poema—bastante coloquial, com as possíveis exceções de upon (em lugar de on por razões claramente métricas, na contramão da tendência acima apontada) e glazed—será afetado, e a carga simbólica também será distinta. Menor risco é assumir que, como nossos bosques têm mais vida e nossa vida mais amores, nossos versos têm mais sílabas.

Assim, a tradução—focada em manter a naturalidade da sintaxe e alguma regularidade métrica dela recorrente—, resvala ou relaxa em outros aspectos. Sua contagem é mais copiosa: dezoito palavras, sendo oito palavras gramaticais (tanto, dum, de, que, a, da, ao, das) e dez itens lexicais plenos (verbos: depende, esmalta; adjetivos: vermelho, brancas; substantivos: carrinho, mão, água, chuva, lado, brancas). Sem o auxílio da conversão zero, a tradução contém mais substantivos que o original; contém também mais verbos flexionados: glazed with rain water, uma oração reduzida, foi vertida por uma oração subordinada plena, e glazed, forma não-flexionada, foi traduzida pelo verbo flexionado esmalta.

Outras regularidades são perdidas: o original é balanceado em sua distribuição lexical (quatro palavras por verso, quatro versos: 4 x 4 = 16); a tradução oscila, e suas estrofes contém, respectivamente, três, quatro, cinco e cinco palavras. A posição dos adjetivos centrais—carrinho, água, galinhas—também perde sua regularidade; apenas galinhas mantém-se destacada no segundo verso da quarta estrofe. Os segundos versos contém, na tradução, uma preposição, um adjetivo, um verbo e um substantivo, numa variação maior que o contraste preposição (iambo) x substantivos (troqueus).

Seria possível manter os substantivos em sua posição de destaque? Novamente, não sem outros desvios que pareceriam mais centrais. Se a tradução parte do pressuposto analítico de que a sintaxe e o léxico predominam sobre (determinam) a métrica, deverá enfatizar a simplicidade sintático-lexical, deixando as estruturas do português tomarem a dianteira. Manter os substantivos isolados significaria lançar mão de inversões frasais que afetariam o registro. Na quarta estrofe, é exatamente o que acontece: o adjetivo brancas foi anteposto ao substantivo; embora haja, sim, quebra de registro, é relativamente leve, e conta como deslocamento da quebra potencialmente presente no uso de upon, já comentado acima. Inversões mais ousadas seriam necessárias nos demais versos, por exemplo:

vermelho de mão
carrinho

que esmalta da chuva
a água

Estas soluções têm algo em comum com as galinhas: são poeticamente penosas; outras—talvez menos sofríveis mas mais desviantes—deveriam ser experimentadas se realmente se quiser manter a isomorfia simultânea de classe gramatical e metro. A inversão em brancas galinhas comporta menos riscos e mais ganhos. Sua motivação é métrica: a manutenção do uso de um mesmo pé nos segundos versos da segunda, terceira e quarta estrofes; vermelho, esmalta e galinhas são todos anfíbracos. (Note-se que a mesma motivação converte a forma pretérita glazed no presente esmalta. Falarei sobre isso mais adiante.) Assim, os itens lexicais plenos nessas estrofes, partilhando a mesma estrutura métrica, ainda se opõem ao monossílabo tônico formado pela preposição dum, na primeira estrofe. Embora a regularidade da tradução não seja perfeitamente isomórfica à do texto-fonte, ainda há algum contraste, com direito a aproximações em que um metro (o anfíbraco) assume a função de outro (o troqueu).

Outra conseqüência da decisão de seguir a sintaxe foi o aumento da regularidade métrica: o primeiro verso da primeira estrofe é um coriambo (ver notas abaixo); os demais são todos compostos pela combinação iambo + anapesto (ou iambo + peônio de terceira). Assim, o português, se diminui a regularidade da distribuição lexical, aumenta a da métrica, numa espécie de compensação entre níveis analíticos.

Finalmente, uma nota semântica, já acima assinalada. Há uma potencial diferença imagética entre ambos os textos: glazed, no particípio passado, sugere um carrinho de mão molhado por um chuveiro que já cessou—por isso mesmo, talvez, vemos já as galinhas a seu redor, desprotegidas da chuva. Esmalta é mais escorregadio, por ser presente do indicativo: as gotas recobrem o carrinho por que ainda chove, ou simplesmente por que ainda está molhado? Uma variante possível seria enfatizar o caráter estático da cena substituindo água por orvalho:

que o orvalho da chuva
esmalta

Semanticamente, orvalho não sugere precipitação no tempo presente, compensando a mudança no tempo verbal; metricamente, a elisão queˆa á-gua é substituída por outra, que traz em seu bojo uma crase: queˆoˆor-va-lho; o número de sílabas e a estrutura métrica são preservados. Trata-se, contudo, de solução ligeiramente mais metafórica, e portanto também interfere no registro e na carga simbólica. Por isso, ainda não me atrevo a incorporá-la, mas mal não faz deixá-la aqui para apreciação.

Creio que as lições a serem extraídas desse exercício são duas: a primeira é que a simplicidade, em poesia, realmente é enganosa; poemas aparentemente despretensiosos podem esconder um complexo estrutural denso, hierárquico, difícil de ser reproduzido em tradução sem se lançar mão de processos compensatórios.

A segunda é que o antigo lugar-comum de que o tradutor deve traduzir “como o autor haveria escrito naquela língua”, além de sociológica e psicologicamente capenga, é tecnicamente falacioso: Williams escreve de forma aparentemente simples, lançando mão daquilo que caracteriza a simplicidade em sua língua: a conversão zero, os pés dissílabos, o léxico breve; o português, em lhe oferecendo outras características para denotar simplicidade, ofereceria outras oportunidades de expressão poética, e não as que foram sugeridas por uma vivência anglófona. Quem deseja escrever The Red Wheelbarrow em português é o tradutor; ao autor, em sendo lusófono, talvez não lhe houvesse ocorrido a idéia, ou talvez a elaborasse partindo de recursos que não os que aqui foram empregados—estes que foram escolhidos baseados numa hierarquia analítica e em substituições funcionais, e cuja razão de ser está, como ocorre em qualquer tradução, num texto prévio.


Sobre métrica acentual: O sistema métrico das línguas germânicas é baseado em pés (feet); trata-se de agrupamentos de sílabas longas e breves, em línguas como o grego e o latim. As sílabas longas eram marcadas pelo diacrítico mácron (¯), e as breves pela bráquia (˘). Em línguas modernas em que a duração da vogal não é relevante, equivalem-se as sílabas longas às tônicas ou acentuadas, e as breves às átonas ou não-acentuadas. Ao longo do texto, os seguintes pés são mencionados: iambo: ˘¯; troqueu: ¯˘; anapesto: ˘˘¯; báquio: ˘¯¯; anfíbraco: ˘¯˘; crético: ¯˘¯; coriambo: ¯˘˘¯; peônio de terceira: ˘˘¯˘.

Sobre as sílabas átonas finais: Quando digo que o coriambo foi empregado, acabo desconsiderando a sílaba átona final, à moda da métrica românica; trata-se, sim, de uma trapaça analítica, mas a estrutura do coriambo me parece tão coesa que dividir o verso em troqueu + anfíbraco me soaria contra-intuitivo. Adaptar o esquema acentual para o português significa, segundo me parece, ter de lidar com o papel das átonas mediais e finais em meio a uma intuição poética que as descarta. Um modo de fazer isso é aceitar substitutos: o iambo final dum verso é substituído por um anfíbraco; o anapesto final, por um peônio de terceira (como, de fato, ocorreu em alguns versos da presente tradução). No caso do coriambo, porém, seria necessário um pé de cinco sílabas; trapacear, nesse caso, é a solução menos dolorosa.