Tradução e topônimos: divertido, mas complicado

O Dezarranjo Ilhéu é um canal do YouTube que humoriza o falar nativo da ilha de Santa Catarina, de extração açoriana. Em dois dos vídeos, apresenta um neto demonstrando à avó seu versátil inglês aprendido pela Internet (em vídeos do Youtube ou por meio de um aplicativo):

O intento humorístico se baseia fortemente nos decalques* tradutórios:  expressões pitorescas como sem condições e boca-mole são automática e respectivamente vertidas para without conditions e soft mouth. Mais estranha ainda é a tradução dos topônimos; no vídeo acima, o garoto nos brinda com a tradução de logradouros florianopolitanos como Cachoeira do Bom Jesus e Saco Grande.

Aqui, vemos exemplificado às avessas algo que havíamos comentado em outro texto: a não-tradução como estratégia de tradução. Nomes de lugares são nomes próprios, e, como tal, não são exatamente tradutíveis; o significado literal das palavras que os compõem têm muitas vezes tão pouca relação com sua função denominativa quanto a etimologia dos nomes próprios de pessoas.

Como os tradutores lidam com isso? Seguramente, em alguns casos, o nome ou alguma parte sua possui tradução denotativa: dificilmente, faremos referência à Praça Vermelhausando seu nome russo, especialmente porque isso exigiria transliteração* do alfabeto cirílico para o romano.

Em alguns casos, apenas uma parte do nome é tradutível: dificilmente alguém no Brasil se referiria ao Monte Rushmore como Mount Rushmore; no caso do Monte Evereste, contudo, vemos que o topônimo, embora não seja traduzido, pode às vezes ser ortograficamente aclimatado*.

Como é possível perceber, nestes casos, ao menos uma parte do nome carrega informação útil, que deve ser traduzida, pois indica de que tipo de lugar estamos falando (parte do cenário urbano, formação geográfica, etc.). Por esta mesma razão, nomes de instituições—que muitas vezes explicam que tipo de instituição é e a que se dedica—muitas vezes necessitam ser traduzidos.

Aqui, porém, deparamo-nos com outro problema: a Organização das Nações Unidas tem várias línguas oficiais, e seu nome tem tradução padrão ao menos para as línguas dos estados-membros; se o leitor da tradução se interessar em pesquisar pela ONU, encontrará não só material em português, mas o próprio site oficial em nossa língua.

Se o nome de uma instituição de mais restrita circulação internacional for traduzido, porém, maiores problemas ocorrerão: dificilmente você chegará ao site oficial da Universidade do Sul da Dinamarca usando esta denominação, mas se pesquisar por Syddansk Universitet ou University of Southern Denmark, terá melhores chances (o inglês, como língua franca, conduz mais facilmente que o português a resultados oficiais).

Traduzir topônimos e nomes de instituições pode significa facultar ou dificultar acesso do leitor a fontes e referências. (Em outro texto, já falei um pouco sobre a importância de o tradutor facultar acesso a referências precisas ao leitor interessado.)

A brincadeira do vídeo, como se vê, revela um pouco da complexidade da tarefa do tradutor, e alguns dos processos de tomada de decisão necessárias mesmo para se optar por não traduzir determinado termo ou expressão.


Glossário

Decalque: segundo Heloísa Barbosa, em seu Procedimentos técnicos de tradução (2004, p. 76), o decalque “consiste em traduzir literalmente sintagmas ou tipos frasais da língua-fonte no texto em língua-alvo”. Às vezes, o decalque gera expressões marcadamente estranhas e sem sentido, como no caso do vídeo, mas é importante lembrar que muitos decalques acabam, sim, entrando no repertório regular da língua de chegada.

Transliteração: Barbosa (2004, p.73) define transliteração como a substituição de uma “convenção gráfica por outra”; por convenção ortorgráfica, entenda-se os diferentes sistemas de escrita ou alfabetos empregados em várias línguas. Em nosso exemplo, o verbete da Wikipédia, oferece Krasnaya ploshchad como transliteração, mas não há regra para se realizar essa operação.

Aclimatação: Barbosa (2004, p.73) define aclimatação como o “processo através do qual os empréstimos são adaptados à língua que os toma”. Um verbo como deletar, por exemplo, ao ser emprestado do inglês para o português, além de passar a ser pronunciado de acordo como nosso sistema fonético-fonológico, ainda passa a ser flexionado segundo nossa morfologia verbal: as quatro formas no inglês—delete, deletes, deleted, deleting—dão lugar a uma quantidade significativamente maior em português—deleto, deletas, deletei, deletaste, etc.