Por que o seu tradutor é mais claro que você?

Uma característica da tradução que tanto estudiosos quanto a prática nos levam reconhecer é que o tradutor tende a produzir uma versão do texto-fonte que o torna muitas vezes mais legível. Tradutores tendem a frasear de modo mais inteligível passagens obscuras, destrinchar sintaxes truncadas e sentenças excessivamente prolongadas, explicitar vínculos coesivos, dentre outras práticas.

As teorias tradutórias ligadas à Literatura, por vezes, percebem esse hábito como deformação ou empobrecimento (em outra ocasião, comentei porque tais exigências críticas me parecem equivocadas); a tradução de textos acadêmicos, científicos, técnicos e legais, por outro lado, nem sempre pode prescindir de escolhas tradutórias esclarecedoras. O que segue pretende explicitar algumas das razões pelas quais o tradutor é propenso a maior clareza.

A primeira razão está ligada à relação entre data de redação e gêneros textuais: textos acadêmicos, científicos, técnicos e legais que precisem ser traduzidos, muitas vezes, têm produção bem mais recente do que algumas obras literárias freqüentemente traduzidas; as línguas fonte e meta, dada a proximidade temporal, compartilham pressupostos sociais e culturais, mas nem sempre redacionais. Um contrato será redigido em inglês seguindo fórmulas tipicamente relacionadas ao modelo de direito adotado em países anglófonos (e.g. a chamada common law); isso pode exigir alguma adequação estrutural, para que o texto traduzido seja reconhecível como um texto legal para um leitor acostumado com outro modelo de direito—trata-se de realidades suficientemente próximas para serem mutuamente inteligíveis, mas não inteiramente idênticas. Regras de polidez, o nível de explicitude de instruções, os graus aceitáveis de expressão de certeza, as fórmulas introdutórias iniciais e finais—todos esses itens podem precisar de adequação para evitar estranhamentos e mal-entendidos.

Essa necessidade está ligada diretamente à principal função do tradutor: a de mediador num processo comunicativo ocorrendo entre línguas e comunidades distintas. Conforme, novamente, preconizam algumas teorias e a prática abona, o tradutor tem responsabilidades que excedem sua relação com o texto: precisa garantir que os autores do texto-fonte consigam se comunicar da melhor maneira possível com os leitores na cultura-meta; tanto o texto quanto os parceiros comunicativos são levados em consideração. O mediador não apenas reproduz o discurso, mas busca-lhe uma forma que potencialize sua inteligibilidade e comunicabilidade, pois estes são seus principais compromissos profissionais.

Finalmente, como a tradução é um processo comunicativo mediado, o tradutor tem suas próprias razões para não soar ambíguo, vago, obscuro e truncado. Um leitor que tenha ciência de estar lendo em tradução, ao se deparar com alguma dificuldade maior, nem sempre saberá ao certo se tal dificuldade se deve às preferências estilísticas do autor ou a uma suposta inépcia do tradutor. O tradutor não é autor do texto, portanto não responde por seus conteúdos, mas isso não quer dizer que não possa ser responsabilizado por sua forma ou pela devida apresentação desses conteúdos. O texto traduzido entra em seu portfólio, e gera uma imagem de sua competência e confiabilidade. Respeitar demasiadamente alguns obscurantismos (em textos mais técnicos, ao menos) reflete negativamente não sobre o autor, mas sobre o tradutor. Nem o tradutor deseja ser visto como menos competente, nem o processo comunicativo é beneficiado se o mediador for visto como tal.

Os estudiosos—atuando em meios universitários e afeitos à tradução de textos literários ou teóricos, redigidos por autores renomados—, terão talvez maior tolerância a certas dificuldades, pois, conhecedores do autor em alguma medida, saberão atribuiu-lhe o peso dessas escolhas. Leitores mais pragmáticos, fazendo uso de textos corriqueiros, não desejam (nem talvez deveriam) ser importunados com dificuldades que podem ser menos estilísticas do que oriundas de pressa ou pouca prática textual.

Conversar com o tradutor certamente ajuda a compreender como seu texto será traduzido; pode ainda apontar a necessidade de uma revisão textual prévia à tradução (que poderia ser feita pelo próprio tradutor, se contratada) e nos auxiliar a ampliar nosso leque de práticas de escrita. A mediação tradutória visa garantir o diálogo, portanto, é melhor executada quando há diálogo.

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