A tradução de citações diretas e a internacionalização de artigos científicos
Quem consulta ou escreve para periódicos acadêmicos nacionais e internacionais está acostumado a ver citações diretas em artigos. Facultam acesso a nossas fontes, agregam confiabilidade e falseabilidade à nossa produção acadêmica. Para os tradutores, porém, apresentam problemas. Digamos que o tradutor está trabalhando numa encomenda do português para o inglês (ou seja, realizando uma versão), e se depara com uma citação. O que deve fazer?
Há diferentes modos de se lidar com citações diretas, mesmo porque há diferentes tipos de citação direta; em nosso exemplo, se a citação estiver em inglês, não há problema algum: é mantida tal qual. Mas e se estiver em português? E se for, ela mesma, uma tradução do inglês para o português? E se estiver em uma terceira língua, ou for tradução de uma terceira língua?
É muito importante prestar atenção aos diferentes modos de se traduzir citações diretas, pois impactam duas regras de ouro da pesquisa acadêmica—as mesmas, diga-se de passagem, que nos obrigam a citar nossas fontes—: a honestidade intelectual e a transparência absoluta na descrição de nossos procedimentos de pesquisa. Mas que modos seriam esses? E como impactam nossa observância às fontes?
1. Tradução direta
Primeiramente, podemos simplesmente traduzir a citação: se a citação se encontra em português, mesmo que o tradutor pressuponha que já existe tradução disponível, pode retraduzi-la. Parece simples, não?
Mas há um porém: traduzir a citação sem indicar que a tradução é exclusiva do artigo pode dar a entender que já existe uma tradução do texto citado, e que o autor a consultou. Isso entra em choque com as referências bibliográficas fornecidas.
Quando traduzimos uma citação para um texto autoral, agregamos em nota ou entre parênteses: minha tradução; seu tradutor, porém, não poderia fazer isso—afinal, não foi você (o autor) quem traduziu, e você não iria querer tomar crédito pelo trabalho de outra pessoa, iria? Assim, como se vê, a prática de não creditar os tradutores de artigos científicos torna esse problema difícil de se resolver.
2. Não-tradução
Se a citação estiver em uma língua estrangeira diferente das línguas-fonte e meta (em nosso exemplo: o original está em português, deve ser traduzido para o inglês e a citação está em francês), o tradutor pode ou não estar aparatado a traduzi-la; parece inevitável que o autor terá de ser consultado, ou que algum acordo deverá ser feito quanto a isso ainda na fase de negociação do orçamento.
Neste caso, a citação em língua estrangeira possivelmente deve ser deixada tal qual: a não-tradução é uma estratégia de tradução, e todos os tradutores a usam em maior ou menor grau; faz parte de sua tarefa decidir quando não traduzir algo.
A não-tradução, porém, interfere na legibilidade (e, portanto, na inteligibilidade) do artigo, o que afeta sua transparência; também pode impactar negativamente sua recepção internacional, uma vez que diferentes públicos terão maior ou menor resistência a textos que contenham trechos em línguas estrangeiras.
3. Tradução indireta
A coisa se complica ainda mais quando a própria citação já é uma tradução. O tradutor, neste caso, estaria realizado uma tradução indireta, por meio de uma língua intermediária.
Traduções indiretas fazem parte da história da tradução, e seu uso tem a ver com as normas tradutórias de determinado sistema—isso é válido tanto para a literatura quanto para outras áreas. Infelizmente, porém, são mal-vistas academicamente, por interpolarem mediação interpretativa entre o original e a tradução, ou seja, por tornarem nossa citação menos transparente.
4. Busca pelos originais ou por traduções existentes
Para lidar com uma citação traduzida, o tradutor poderá citar o texto original, ou traduzir a partir deste; no primeiro caso, o texto original deve haver sido escrito na língua-meta da tradução; no segundo caso, o tradutor deve ser capaz de traduzir a partir da língua-fonte do original da citação.
Citar o original inglês de uma citação direta em uma tradução para o inglês parecerá não só a mais óbvia, mas talvez a única solução possível. Mas não é bem assim.
Em primeiro lugar, isso obriga o tradutor a um trabalho extra de pesquisa, que pode ser infrutífero. Alguns originais estarão em domínio público e disponíveis na Internet; outros estarão confinados em bases de dados de acesso restrito, ou em livros fora de circulação e de alcance. Além disso, o tradutor pode não ter dados suficientes para pesquisar por este original: as referências bibliográficas nem sempre são entregues aos tradutores, já que são muitas vezes consideradas intradutíveis e não entram no orçamento.
Mais gravemente ainda, a honestidade intelectual do artigo também fica comprometida: afinal, o autor do artigo não leu o original, e sim uma tradução. Por mais confiável que seja a tradução, pode haver diferenças relevantes, e o leitor deve ser informado da forma mais precisa possível sobre as fontes do artigo.
Finalmente, citar o original obrigaria o tradutor a alterar as referências bibliográficas, mas isso extrapola sua obrigação contratual (conforme dito anteriormente, às vezes nem as recebemos), além de também incorrer em lapso de honestidade intelectual.
5. Paráfrase
A quinta e última estratégia consiste em converter a citação direta em indireta, ou seja, parafrasear ao invés de citar; pode interferir na estrutura do texto, desfazendo a formatação de citação, e acrescentando fórmulas como segundo Fulano…
Esta solução, apesar de um pouco mais intrusiva, apresenta diversas vantagens: abranda o problema das traduções indiretas, não dá a entender que o texto citado tenha tradução prévia, aumenta a fluência e mantém intactas as referências bibliográficas.
A paráfrase tem ainda uma vantagem adicional. Artigos internacionais costumam ter muito menos citações diretas que os artigos brasileiros; no Brasil, as práticas de citação acadêmica não ferem direitos autorais, mas, ao publicar em periódicos internacionais, poderá ser exigido que você ateste que obteve os direitos de reprodução da citação direta. Cada editora tem seu modo de receber solicitações de cessão de direitos e seus prazos para responder.
A moral desta estória é dupla:
- Converse com seu tradutor; esteja aberto a receber solicitações e prestar esclarecimentos; forneça-lhe materiais adicionais caso solicite.
- Se você pensa em internacionalizar seu artigo traduzindo-o, reduza as citações diretas ao indispensável. Isso evitará problemas de tradução que são, na verdade, problemas de metodologia científica—ou seja, problemas que seu tradutor não tem autorização para resolver no seu lugar.