Cinco haicais comentados de Matsuo Bashô
Mesmo ciente de que o haicai é uma forma originariamente japonesa, meu contato inicial com este tipo de pouca produção poética foi originalmente autóctone: os haicais de Alice Ruiz , bem com a antologia brasileira de Rodolfo Witzig Guttilla (Boa companhia: haicais. São Paulo: Cia das Letras, 2019) foram meus primeiros modelos. O haicai é forma poética satisfatoriamente arraigada no Brasil e que já conta, aqui, com sua própria tradição.
Recentemente, porém, tive oportunidade de estudar alguns haicais dos grandes mestres japoneses, tendo em vista sua forma, temas e sobretudo sua relação com o budismo zen. Inicialmente guiado pelos artigos de Hamdi Hameed Yousif (Haiku Poetry: An Introductory Study, 2009) e Reginald H. Blyth (Buddhism and Haiku, 1951), estas fontes foram complementadas por outras, informais mas não menos esclarecedoras, tais como o blogue World Kigo Database de Gabi Greve e a Yuki Teikei Haiku Season Word List.
Ofereço abaixo cinco exercícios de tradução do japonês para o português de haicais do poeta considerado responsável por estabelecer sua forma clássica no Japão: Matsuo Bashô. Embora os comentários de Blyth sejam lacunares, suas traduções forneceram-me não só a base para o estudo do japonês, mas também, em alguns casos, o ponto de partida das interpretações.
o sapo na lagoa
古池や蛙飛びこむ水の音
furu ike-ya / kawazu tobikomu / mizu-no oto
Lagoa antiga!
Mergulha o sapo,
barulho d’água.
Formalmente perfeito, talvez seja um dos melhores exemplos de algumas das características do haicai: em primeiro lugar, sua simplicidade lexical (não obstante o termo arcaico para sapo). Em segundo lugar, a escassez sintática: cada verso é sintaticamente contido em si mesmo; os pentassílabas são simples sintagmas—ficando, portanto, abaixo do nível da oração—; sua relação com o heptassílabo (que contém o único verbo do poema), deve ser depreendida do todo, não estando explícita por mecanismos coesivos.
Este haicai também demonstra magistralmente a importância da palavra de corte (kireji), que topicaliza a primeira imagem, dividindo-o em dois blocos. O leitor é convidado a se ater inicialmente à visão da furu ike (lagoa antiga); em inglês, ike é traduzido por pond: um corpo d’água de pequeno porte, menor que um lago, e que não corre, podendo ser natural (lagoa) ou construído por seres humanos (tanque). Trata-se, portanto, do corpo d’água parado.
Em segundo lugar, é importante lembrar que esta é uma lagoa “antiga”; o “antigo” é algo que permanece suficientemente idêntico a si mesmo ao longo do tempo, que sobrevive ao processo histórico. Assim, a visão da lagoa antiga oferece ao leitor uma imagem estática topicalizada—com suas possíveis de conotações de algo estável, venerando, respeitável, e bem-estabelecido. A lagoa nos oferece uma imagem condensada da estabilidade—reforçada, neste caso, pela ausência de verbo.
A esta imagem, contrapõe-se a ação rápida do sapo: seu pulo lagoa adentro e o barulho que causa. Na tradição do haicai, o sapo está ligado à primavera, e é particularmente conhecido por seu coaxar—ou seja, por ser um animal barulhento. (Também Emily Dickinson, num de seus poemas, menciona o sapo como um animal primaveril e barulhento.) Aqui, o barulho que produz é o da água; o sapo, mais que ruidoso, torna-se ágil, impulsivo, instantâneo; sua agilidade nos lembra que, ao contrário da lagoa, não é nem pode ser “antigo”, pois é um ser vivo de vida curta. Sua ação imediata, impensada, súbita perturba a paz da plácida e líquida anciã.
O contraste evoca um dos temas favoritos do haicai: a impermanência. A antiguidade da lagoa é frágil perante a vontade inconsciente e impulsiva de um de seus habitantes; a ordem é constantemente interrompida por semelhantes eventos. Podemos, em conclusão, dizer que a surpresa da ação do sapo é dupla: é surpreendente por ser súbita, e ainda mais surpreendente por que não deveria sê-lo—afinal, o que seria mais natural que um sapo pular na água? À “natureza“ da lagoa pertencem tanto a estabilidade quanto a perturbação.
o corvo pousado
枯枝に烏のとまりけり秋の暮
kare eda-ni / karasu-no tomarikeri / aki-no kure
Ramo ressecado,
corvo empoleirado
—anoitece o outono.
Elin Sütiste, numa detalhada análise deste haicai e de suas traduções para o inglês, aponta algumas das dificuldades que propõe a leitores e tradutores ocidentais: a dificuldade em se saber quantos corvos há (uma vez que o japonês não apresenta marca de plural), e a dificuldade em se optar entre o fim de uma tarde de outono o fim do outono no pentassílabo final. Quanto ao número de corvos, segundo a autora, uma ilustração do próprio Bashô sugere que reduziu-os a um único corpo, a partir de haicai composto anteriormente—igualmente ilustrado, mas cuja ilustração apresenta 27 corvos. Quanto à kigo, independentemente de como se interprete a palavra final do poema (kure), a idéia é a de algo que se acaba.
A palavra de corte aqui também é importante, por dividir o poema em duas imagens claras: por um lado, o corvo solitário, empoleirado num galho seco; por outro, o entardecer. Se, no caso do sapo, a observação do poeta parece limitar-se à descrição dos fatos sem interferir na realidade—observação certamente falsa, mas cuja ilusão é relativamente forte—, aqui já é mais difícil não perceber a projeção de sentimentos pessoais na imagem presenciada. Tudo é solidão, desolação e morte. Se o sapo nos lembra da transitoriedade e da impermanência através da ação, aqui, este mesmo traço inescapável da existência parece retratado através da inação. A árvore parada, o corvo parado, o outono e a tarde, embora estáticos todos, caminham silenciosamente em direção ao fim.
os salgueiros
五六本よりてしだるる柳かな
go roku-hon / yori-te shida ruru / yanagi-kana
Cinco ou seis,
juntos, pendendo,
salgueiros…
Neste haicai, chama inicialmente atenção o fato de que, apesar de serem em número muito pequeno, o poeta simula não conseguir contá-los: trata-se de cinco ou seis . Esta simulação pode dar indício de que assiste a cena a uma certa distância, ou que os salgueiros, muito próximos, nem se permitem contar, nem podem ser vistos como um só. Os salgueiros eludem tanto a ilusão fundamental de que se são entidades plenamente discretas, discrimináveis, quanto a ilusão de uma união absoluta e fundamental, da plena identificação entre si—as idéias de “não dois” e “não um”, que informam a prática meditativa zen.
Formam um bloco não somente para o olhar, mas principalmente para o coração: juntos, pendem em direção à terra; juntos, irmanam-se, no que parece ser tristeza, abatimento ou cansaço. Não é impossível que nos lembrem da floresta de chorosa de choupos em que se transformaram as helíades—as irmãs de Faetonte, o filho do deus Sol, que ousou dirigir seu carro, e teve de ser fulminado por Zeus (Veja-seo início do livro 2 das Metamorfoses). Os salgueiros parecem comungar uma dor; na dor, deixam de ser vários para tornarem-se um bloco; as emoções humanas—em particular, as mais desafiadoras—tornam-se portais para o conhecimento da união profunda de todas as coisas; portais que permitem ao mesmo tempo a libertação do dualismo e da visão unificada e universalizante—o “não dois” e o “não um”.
Este pathos compartilhado é, muito provavelmente, a compaixão. O salgueiro, como kigo, está ligado à primavera; no Budismo, é um dos atributos do bodisatva Kwan Yin, cultuado em forma feminina e ligado à compaixão.
o vizinho
秋深き隣は何をする人ぞ
aki fuka-ki / tonari-wa nani-o / suru hito-zo
Meio outono:
meu vizinho
como estará…
Blyth nos informa que este poema outonal foi composto às vésperas da morte de Bashô. Para Blyth, a pergunta parece assumir um sentido mais profundo: uma preocupação sobre como o vizinho conduz sua existência. Esta não seria o “como vai?” perfunctório com o qual cumprimentamos as pessoas sem real interesse no que se passa com elas.
O questionamento ocorre em meio a um ”profundo outono”—um outono particularmente frio, já não mais em seus primórdios. Ao contrário dos poemas anteriormente analisados—para os quais podemos pressupor o eu-lírico contemplando diretamente o sapo, o corvo, os salgueiros—, aqui não há como contemplar diretamente o outono; também o vizinho está ausente: a pergunta não é feita diretamente para ele. Neste poema, o poeta deve se encontrar em sua casa, abrigado do outono, e talvez mesmo completamente sozinho, falando de si para si.
As transformações climáticas naturais geram períodos de aproximação e afastamento; durante este, mesmo aquilo que nos é vizinho pode deixar de ser fazer parte do nosso convívio diário; o isolamento e a solidão são lembretes de que a vida humana também está imiscuída ao ciclos naturais; incidentalmente, a Yuki Teikei Haiku Society lista a “solidão de outono” como kigo da estação, ligada à vida humana. Se acrescentamos ao poema a notícia da iminente morte do poeta, este distanciamento, de sazonal, passa a prematuro: o outono antecipa o afastamento final.
a pesca do polvo
たこ壺やはかなき夢を夏の月
tako-tsubo-ya / hakanaki yume-o / natsu-no tsuki
Jarros de polvo!
Efêmero um sonho.
Luar de verão.
Este poema alude à pesca do povo. Os tako-tsubo (literalmente, “jarros de polvo”) são jarros de cerâmica, usados como armadilhas; são inseridos no oceano durante a noite, e o polvo neles busca abrigo; quando são trazidos à tona, o polvo não tenta escapar. O polvo é um alimento muito apreciado no Japão, também visto como um bom presente. Greve, em seu blogue, nota que existe certa semelhança fonética entre 蛸 / たこ (tako, “polvo”) e 多幸 / たこう (takô, “grande felicidade”), facilitadora de trocadilhos.
As traduções para o inglês oscilam entre traduzir este primeiro verso como polvos em jarros ou armadilha para polvos. A rigor, o verso menciona apenas os jarros: tako-tsubo é um substantivo composto dicionarizado; não me parece necessário que se imagine um animal dentro deles, assim como não seria necessário imaginar que há um cachorro próximo sempre que mencionamos ração para cachorro. Isso é importante, porque delimita o campo de visão do poeta: numa noite enluarada de verão, o poeta contemplo os jarros (não os animais) na praia. Este provavelmente é um haicai que ligado à categoria da vida e dos afazeres humanos: a kigo faz alusão explicita ao verão; o polvo é associado a várias estações, mas é pescado entre a primavera e o verão no hemisfério norte.
Assim como no caso da lagoa, a palavra de corte -ya, ao final do primeiro verso, topicaliza os jarros: é a partir de sua visão que se desdobra o pensamento do poeta; são os jarros que o incitam a falar em “sonhos efêmeros”. Que sonhos seriam esses? O alimento? O prazer da mesa? Por que seriam efêmeros? Podemos aventar três hipóteses interpretativas:
Em primeiro lugar, é possível relacionar os sonhos a função utilitária dos jarros: pescar alimento. Os desejos basilares do ser humano—alimentação, proteção, conforto—devem ser constantemente saciados. A pesca, como todas as demais atividades humanas—em especial, aquelas ligadas à busca por alimentos ou a seu cultivo—, é controlada pelo ciclos naturais: as estações, as marés, os períodos de reprodução dos seres vivos. Esses desejos nunca são plenamente satisfeitos, devem ser constantemente buscados e renovados. Mesmo vazios e inativos, os jarros parados na praia contêm a promessa do alimento e do prazer.
Em segundo lugar, não são apenas os seres humanos que buscam satisfazer desejos com esses jarros. Efêmero também o desejo do polvo de buscar proteção naquilo que, na verdade, é uma armadilha: se os humanos são efêmeros pela necessidade de serem constantemente saciados, os do polvo o são por serem falsos. O jarro não o protegerá—pelo contrário, há de leva-lo à morte.
Mais radicalmente—e seguindo agora a deixa de Blyth (1951, 312)—, talvez sejam os próprios jarros os “sonhos efêmeros”. É a experiência humana como um todo que é irreal. O “sonho”, antes ligado ao desejo, torna-se agora ilusão. Feitos de cerâmica, os jarros parecerão mais duradouros que a lua de verão, que o próprio verão, mas isso é falso: o contraste entre o jarros, no primeiro verso, e o luar, no terceiro, faz com que o caráter transitório desta e daqueles seja mutuamente iluminado.