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Bestiário ou Cortejo de Orfeu (Le Bestiaire ou Cortège d’Orphée), Guillaume Apollinaire (13-17)

Minha tradução dos poemas décimo terceiro a décimo sétimo do Bestiário ou Cortejo de Orfeu, de Guillaume Apollinaire; seguem-se as notas do tradutor e minhas notas de tradução.
Bestiário ou Cortejo de Orfeu (Le Bestiaire ou Cortège d’Orphée), Guillaume Apollinaire (13-17)
Photo by James Wainscoat / Unsplash

(13)
Orfeu (2)

Ácaro, inseto, ciliado,
O micróbio, turba imunda
De cem olhos, patas mil!
Maravilhas, e admirado
Mais que às sete, quem os viu,
Ou teu paço, Rosamunda!


(14)
A lagarta

Quem trabalha, rico fica.
Poetas pobres, mãos à obra!
A lagarta lida, e em rica
Borboleta se desdobra.


(15)
A mosca

Nossa mosca aprendeu com zelo
Canções que escutara em verdade
Da mosca mágica, entidade
Lapã que vive em meio ao gelo.


(16)
A pulga

Pulguinha, és amante e és fiel,
Pois quem nos ama é-nos cruel!
Por estes, sai-nos sangue a flux.
Ser bem-amado ao mal conduz.


(17)
O gafanhoto

Gafanhotinho a saltar,
Que São João alimentou.
Vá meu verso alimentar
Gente melhor do que sou.


Notas do autor

(13.6)

Et le palais de Rosemonde
(teu paço, Rosamunda!)

No tangente a tal palácio, por testemunho do amor que o Rei de Inglaterra nutria pela amante, eis essa copla queixosa, cujo autor desconheço:

Pour mettre Rosemonde à l’abri de la haine
Qui lui portait la reine
Le rois fit construire un palais
Tel qu’on n’en vi jamais.

(O rei, pra proteger da rainha iracunda
A amada Rosamunda,
Palácio construiu,
Como nunca se viu.)

(15.3-4)

Les mouches ganiques qui sont
Les divinités de la neige

(Da mosca mágica, entidade
Lapã que vive em meio ao gelo.)

Nem todas aparecem sob a forma de flocos, mas muitas foram domesticadas pelos feiticeiros finlandeses ou lapões, e os obedecem. Os feiticeiros transmitem-nas de pai para filho, e as guardam em caixas onde ficam invisíveis, prestes a voarem em enxame para atormentar os ladrões, entoando palavras mágicas, tão imortais quanto elas.

(17.1-2)

Voici la fine sauterelle,
La nourriture de saint Jean.

(Gafanhotinho a saltar,
Que São João alimentou.)

Et erat Joannes vestitus pelis cameli, et zona pellicea, circa lumbos ejus, et locustas, et mel silvestre edebat. S. Marcos, 1, 6.

(João estava vestido de pelos de camelo e com uma faixa de couro em volta da sua cintura, alimentando-se de gafanhotos e de mel selvagem [trad. Frederico Lourenço]).


Notas do tradutor

(13.3-4a)

Rotifères, cirons, insectes
Et microbes

(Ácaro, inseto, ciliado,
O micróbio)

Ácaro traduz cirons, denominação de ácaros usados no processo de fabricação de certos queijos, que passavam pelos menores animais visíveis a olho nu. Ciliado traduz rotifères (rotíferos), animais invertebrados microscópicos, cujo nome deriva das coroas de cílios em torno da boca. A lista, como se vê, enfatiza microorganismos.

(13.6b)

Rosemonde
(Rosamunda)

Nome da personagem-título de três obras dramáticas: (1) Rosamunde, Singspiel de Anton Scheitzer (1733-1813), sobre libreto de Christoph Martin Wieland, estreado em 20 jan. 1780. (2) Rosamunde, Fürstin von Zypern [Rosamunda, Princesa do Chipre], peça de Helmina von Chézy (1783-1856) sobre heroína homônima; conhecida principalmente pela música incidental, composta por Franz Schubert, estreada a 20 dez. 1823. (3) Rosamund, Queen of the Lombards [Rosamunda, rainha dos lombardos] (1899), tragédia de Algernon Charles Swinburne (1837–1909). Nenhuma parece corresponder à referência de Apollinaire, que parece haver sobrevivido apenas em sua citação.

(15.2b)

Norvège
(Lapã)

Em sua nota, Apollinaire menciona “feiticeiros finlandeses ou lapões”, e o trecho do relato no qual se baseia (ver nota abaixo) trata os habitantes da região por lapões; entretanto, a Lapônia é uma região que abrange Noruega, Suécia, Finlândia e Rússia. A motivação para a que o nome do país figure no poema pode ser mais propriamente rimática.

(15.3a)

Les mouches ganiques
(mosca mágica)

A descrição dessas entidades presentes em rituais mágicos e divinatórios da Lapônia parece se originar do explorador italiano Giuseppe Acerbi (1773-1846), citado longamente pelo jornalista e historiador francês Léouzon Le Duc (1815-1889). Em 1802, Acerbi publica em inglês seu relato de viagens à Suécia, Finlândia e Lapônia entre 1778 e 1779; mouche ganique derivaria do inglês ganic fly. O trecho relevante, reproduzido em meio a longa citação por Le Duc, versa sobre os rituais realizados por feiticeiros chamados Noaaids: “As moscas ganiques são espíritos inteiramente à disposição dos Noaaids, sempre prontas a executar suas ordens; são-lhes dadas por seu pai, também Nooaid, que as recebera de seu pai, e assim por diante, formando uma longa linhagem de feiticeiros. As moscas ganiques são invisíveis a todos, exceto ao feiticeiro, que as guarda numa caixa, até que seja hora de usá-las” (ACERBI, 1802, vol. 2, p. 311; LE DUC, 1845, vol. 2, p. 172). Mais adiante, Acerbi menciona rituais para revelar a identidade de ladrões, e as ameaças aos culpados assim expostos, que incluíam soltar as ditas mouches ganiques contra eles (ACERBI, 1802, vol. 2, p. 312; LE DUC, 1845, vol. 2, pp. 173-4). Como se vê, a descrição de Apollinaire é oriunda diretamente deste relato, embora o fato de tais moscas “entoarem palavras mágicas” seja interpolação sua.

Bestiário ou Cortejo de Orfeu (Le Bestiaire ou Cortège d’Orphée), Guillaume Apollinaire (1-6)
Minha tradução dos seis primeiros poemas do Bestiário ou Cortejo de Orfeu, de Guillaume Apollinaire; seguem-se as notas do tradutor e minhas notas de tradução.
Bestiário ou Cortejo de Orfeu (Le Bestiaire ou Cortège d’Orphée), Guillaume Apollinaire (7-12)
Minha tradução dos poemas sétimo a décimo segundo do Bestiário ou Cortejo de Orfeu, de Guillaume Apollinaire; seguem-se as notas do tradutor e minhas notas de tradução.