Dois camelos (Two Camels), Robert Browning

Disse: “Tira-me, senhor, uma dúvida:
Todo sábio que conheço, aos discípulos,
Diz: ‘Se queres ser sábio, mortifica-te!
Às gulas, nega os anseios bestiais!
Dize: Se amo melões, também os porcos!
Cavalo, burro e mula, da forragem
Não deixam sobrar grão, mas o jejum
Nutre o espírito’—tal seu conselho.
Noto, porém, que comes com apetite,
Nem repreendes o que lambe o beiços,
E diz: ‘Bem-temperada estava a sopa!’
Pode a sabedoria combinar-se
Com o prazer por certos acepipes?
(Não me refiro ao cúpido glutão.)
Mas venta, esta manhã, mais que o normal,
Já te cobres com pele de carneiro;
O sábio, certamente, ocupará
A mente de conceitos muito alçados
Acima de mudança em nosso clima
Que nos faça espirrar, é como penso…”
Ferixta, respondendo-o, disse: “Filho,
Sói que semelhe impensada a verdade.
Que tal se ta exprimisse por parábola?
Certo homem possuía dois camelos,
Dentre os melhores que há, e, pra semana,
Carregar-lhe-iam a mercadoria
De Nixapur a Sebzevá; seria
Travessia apressada e em prazo curto,
Sem se arrestar por duna, areia ou seca,
E sem descanso, ou perderia a feira.
Fitando o comedouro, os dois camelos,
Frente à forragem farta, matutavam.
Diz um: ‘Desejo os elogios do mestre,
Casco e corcova entrego a seu serviço.
Como o farei? Vês farto o comedouro:
Capim, tremoço, beldroega e mais!
Pois poupa teu dinheiro, amo e senhor!
Cruzarei a lonjura sem custar
Nem um tostão além deste farelo
Velho e rançoso!’
______________ Diz o outro: ‘Ó meu mestre,
Bendito sejas pelo meu repasto,
Opíparo e oportuno! A teu dispor
Quanta força hei em mim—e sem dobrar
Os joelhos, com tua farta carga às costas—
Enfrenta e vence areias e simuns,
Até teus bens chegarem ao destino.
Faço, assim, jus ao alimento ganho.
Da folha fofa ao ramo mais fibroso,
Tudo hei de mastigar, tudo engolir!
Com que amargor não me reprovaria
Se força me faltasse, ao avistar
Sebzevá, se soubesse que me falta
Por bocadinho que deixei de lado!’
Foi mesmo assim: dos dois, a besta abstêmia
Colapsa a meio do caminho—a carga
Fica aos ladrões, e a carcaça aos abutres.
E o sábio e grato, à porta do mercado,
Sem pacote extraviado, descarrega.
Qual pensas conseguiu os elogios
Do proprietário, e servo bom e fiel
Foi por ele considerado? Então,
Pra resolver tua dúvida enjoadinha:
Festim, jejum, que importa? Teu serviço
Importa cumpras, e aceitar ajuda:
A mão recusada é pé que tropeça.
Se vences a corrida, quem dirá:
‘Bebeu à larga e Lilit o beijou’?

Filho, pensa inda nisso: se uma coisa
Por mim, nunca foi desfrutada, nunca
Dela provei satisfação, como hei
De partilhar dito deleite? Não!
Como, ignorante (como sói seria),
Exortar que a compartilhem amigos,
Se não sei seus efeitos, bons ou maus?
Se ao desfrutar me apraz chamar pecado,
Por que trabalharia—pra infestar
A mim e aos meus com chances de pecar?
Se a alegria amaldiçoa, pra que
Exortar que a busque ou desfrute aquele
A quem mais honra vida pia e pobre?
Pra convencer, devo estar convencido;
De modo igual, pra que alegria espalhe
Devo, em primeira mão, sabê-la eu.
Abnegar-me pelo irmão é benesse
Acima das benesses, mas por mim?
Acaso, ao assistir um paciente,
O médico proclama: ‘Deixa-me, antes,
Descartar minha saúde’? Não, filho:
Riqueza é que a alegria nos ensine
Quão aprazível o que presenteamos,
Não a vaidade de evitar sabê-lo!
Busca a alegria, e dá graças a Deus!
Diz o Adversário, no Livro de Jó:
Haḥinam īare’ ’Īōv ’Elohīm?
Em tradução: ‘Jó teme a Deus em vão?’
Jó não abdica o ser criatura, ó tolo!
Não se isola; mas age, independente,
De igual pra igual, e o que possui não é
Senão quanto se deu, então pra que
Agradecer a Deus? Melhor dizer:
Mi’Elohīm. ‘Iguais, Jó, tu e Eu;
Por ti trabalha, nem Me peças nada;
Suporta as dores, que não causo ou curo,
E peço: o que conquistes, não Mo peças,
Ou que, magnânimo, afastes de ti,
Pois pares, Eu e tu, reconhecidos—
Coisa impossível se o que desejares
For, em verdade, implante Meu, e Meu
Somente o poder de to agraciar.
Ouve, antes, contra a humana indiferença:
‘Por que faminto ouvido te daria
Por música, por que fazer teu olho
Voltar-se ao instrumento que dedilho,
Senão pra me pedires que o tocasse?’”


Vi, certa vez, um químico tomar uma pitada de pó
—Poeira, parecia—e dum frasco meio aberto, outra pitada.
“Nada e nada, juntos”, disse, “fazem algo!”
E fizeram: trovão, mas maior; relâmpago,
Mas pior, testando os nervos da platéia.
Vimos o que era, perguntamo-nos o que seria.

Se não soubesse quanto um lábio trêmulo,
Olhar meio hesitante, maçãs corando,
Abalam o coração, como conceberia um paraíso?
Que se assemelhe à terra, tal como a conheço!
Alegria não maior, não melhor,
Mas duradoura—dizem, quem dera acreditasse.


Notas

Dois Camelos: Oitava parte do volume Ferishtah’s Fancies (Os devaneios de Ferixta), publicado em 1884. O livro seria um único poema longo, composto de diálogos entre o adivinho persa Ferixta e seus discípulos, mas a conexão tênue entre os diálogos permite que se lhes dê status de poemas autônomos.

Disse… Dize… Diz: Nesta primeira estrofe, há três falas, uma dentro da outra: a pergunta do discípulo (vv.1-20), o suposto pensamento de outros mestres (vv. 3-8), e o que pedem aos discípulos que digam (v. 5).

Nixapur a Sebzevá: Nixapur é capital de distrito no atual Irã; Sebzevá é uma cidade imaginária constante do volume de Browning.

Haḥinam īare’ ’Īōv ’Elohīm: citação de Jó 2, 9b, traduzida no verso abaixo. Note-se que a citação perfaz um decassílabo.

Em tradução: o original lê In Persian phrase (em persa), e vejo, em decorrência, ao menos uma sugestão de que Browning ubica o Livro de Jó na Pérsia. Não obstante, apesar de o poema em si ser inglês, as personagens conversam em persa, e é para o persa que Ferixta traduz a citação hebraica.

Mi’Elohīm: Browning emenda o hebraico bíblico, trocando a última palavra para mi’Elohīm (de Deus): seria mais correto, Ferixta afirma, dizer que Jó tem medo de Deus em vão.