J.K. Rowling e a construção de mundos ficcionais
Recentemente, J.K. Rowling anunciou que Harry Potter se revelará bissexual no primeiro volume da triologia planejada para 2021. Como de costume, seguiu-se a avalanche de tuítes e memes. Embora neste caso Rowling esteja antecipando dados de um volume novo, quando me deparei com a notícia, lembrei-me de outra sua prática bastante comum no Twitter: a de incrementar o universo dos livros.
Os fãs, por vezes, reagem de modo curioso. Afinal, trata-se da primeira vez que uma autora utiliza uma plataforma digital para emendar um universo de ficção. Seguramente, antes do advento do Twitter, nenhum autor poderia havê-lo feito, mas nenhum antes dela ou após o Twitter pensou nisso. Rowling pode estar inaugurando uma forma exclusivamente digital de interação com os fãs da série, e buscando capitalizar em cima disso. Mesmo assim, as implicações de seu gesto podem ser mais amplas.
Como jogada de marketing, a estratégia é risível, mas eficiente—ou eficiente porque risível. Anos atrás, a escritora Glória Perez interagiu amplamente com os espectadores via Twitter, para justificar escolhas ceticamente recebidas por quem acompanhava a novela Salve Jorge (2013). Perez soía queixar-se da falta de imaginação do público, que não alcançava compreender a trama. A certa altura, por exemplo, Lívia (a vilã, interpretada por Cláudia Raia) assassinava uma personagem em um elevador de hotel. Os internautas reagiram: hotéis têm câmeras de segurança; a autora rebateu: Lívia tem cúmplices no hotel.
O inusitado está aí: provavelmente, nada na trama conforme televisionada indicava que seria seguro para a vilã realizar o assassinato. A autora, sob a forma de reprimenda ao público, acrescenta dados externos à obra, fazendo uso de outra mídia. O ato curioso serviu, de fato, para prender os espectadores à novela, tão ansiosos pela trama quanto pelas explicações extemporâneas da autora.
A semelhança entre os dois casos acaba aqui. Existe uma diferença fundamental entre a telenovela e os volumes de Rowling. Enquanto aquela é um fenômeno restrito à TV aberta—que pode, quando muito, ser acompanhada por outras mídias de forma suplementar—, Harry Potter é, legitimamente, um fenômeno transmidiático. A literatura de maior sucesso atualmente no mundo é toda transmídia: livros, revistas em quadrinhos, filmes e séries interagem, e se constroem mutuamente, gerando um complexo mundo ficcional que escapa aos autores originais, por um lado, e, por outro, permite-lhes continuar criando.
Charles Schulz escreveu as tirinhas de Peanuts por meio século; houve vários desenhos animados feitos a partir daí—eu mesmo conheci suas personagens pela televisão antes de lê-las em jornais—; suas crianças jamais cresceram. Mafalda, Calvin & Hobbes e a Turma da Mônica—todos tributários de Schulz em maior ou menor grau—tampouco conheceram um nanossegundo de envelhecimento. Verdade, conforme algumas personagens se desenvolvem, podem envelhecer—o pianista Schroeder foi introduzido como um bebê, mas logo passou a ter idade comparável à de Charlie Brown e dos demais—, mas isso era um processo isolado, incongruente e raro.
Rowling teve auxílios com que Schulz não contou; pôde assistir o crescimento de Harry Potter e amigos através dos atores que os interpretaram nos cinemas. Quando a Turma da Mônica ou os Peanuts são convertidos em desenhos animados ou adaptados aos cinemas, quando mesmo gera-se deles versões adolescentes, temos produtos secundários, sem poder decisivo sobre a peça principal; quando Harry Potter vai ao cinema, temos aí uma franquia cinemática que efetivamente interage com o produto principal, e pode alterá-lo. Por isso, Potter cresceu e se casou—porque Daniel Radcliffe dava à autora uma medida de crescimento à qual poderia seguir, mesmo deveria, para poder continuar produzindo filmes e se desenvolver juntamente não apenas com o ator, mas com o público-alvo.
Foi esse fenômeno exclusivo à era digital que permitiu a Rowling interferir em seus mundos ficcionais desde outra plataforma. Rowling pode acompanhar os novos tempos, por assim dizer, e transformar suas personagens tanto dentro quanto fora dos livros. Mesmo assim, a reação entre amistosamente jocosa e abertamente afrontosa do público parece mostrar que há algo errado. A pergunta que daí surge é a seguinte: teria mesmo a autora direito a fazer isso?
O funcionamento transmidiático de sua obra e o fato de que é, sim, a autora principal—os livros são a peça-chave de todo o complexo diegético, embora interajam com outras produções ao longo do tempo—nos levariam a dizer que sim. No entanto, Rowling pode estar fazendo mais do que simplesmente alterar o mundo ficcional que lhe diz respeito, e aí podemos vislumbrar que haveria boas razões para se desconsiderar seus tuítes.
A primeira e mais superficial seria o inconveniente. Há diferentes níveis de engajamento por parte do público, e nem todo o leitor é necessariamente fã; sentir-se forçado a seguir livros, filmes e tuítes para conhecer a obra parece um tanto exagerado, especialmente porque, diferentemente dos dois primeiros, tuítes são repentinos: não têm data de estréia, nem qualquer caráter oficial. Para o público não-anglófono, o problema é ainda maior: se o tuíte não viralizar, provavelmente não receberá tradução para outras línguas.
A segunda, um tanto mais controversa, é a percepção de um certo oportunismo por parte da autora, que busca aclimatar as personagens aos novos tempos por meio de escólios digitais; não podendo alterar rapidamente os volumes já existentes, Rowling os atualiza retroativamente, por meio de anotações via Twitter.
A supracitada bissexualidade de Potter—desta vez, uma mudança a ser incorporada em livro e não simplesmente rabiscada em tuítes—é uma possibilidade gerada pelo crescimento transmidiático da série em meio a um mundo que vem experimentando transformações de ordem ética e política para além (mas com o auxílio) do digital; anteriormente, Rowling incluiu estudos africanos na série, referendou uma Hermione negra e abriu o universo sexual das personagens por meio de tuítes e entrevistas. Alguns recebem de muito bom grado essa percepção da autora de que o mundo mudou, e de que deve aceitar se adaptar; outros vêem nisso tentativa de capitalizar em cima dos crescentes movimentos identitários. (Pessoalmente, prefiro ver menos oportunismo e mais solidariedade; o caso específico da Hermione negra da Broadway será comentado mais abaixo.)
Mundos ficcionais, seus princípios constitutivos e mídias digitais
A mais forte razão, contudo, para desconsiderar esse tipo de alteração através de outras plataformas diz respeito não à série, mas ao funcionamento das obras de ficção—mais especificamente, à construção de mundos ficcionais.
Quando assisti Enrolados (2010) no cinema, havia um menininho próximo. A Rapunzel do filme tem o poder de regenerar e rejuvenescer as pessoas, enrolando-as em seus cabelos e cantando palavras mágicas; esse poder se perde, contudo, caso corte uma mecha do cabelo. Ao final do filme, Rapunzel, para derrotar a madrasta, corta todo o cabelo, perdendo os poderes; mesmo assim, ao chorar sobre o amante morto, ressuscita-o. Lembro-me que o menininho ao lado protestou imediatamente: “Mas ela não fazia isso antes!”
A reação é perfeita. Mundos ficcionais são complexos estruturados; embora, como produtos artificiais, estejam sujeitos a incongruências, todo mundo ficcional deve ser elaborado de forma que, para o público, seus elementos constitutivos estejam claros—especialmente aqueles que diferem do mundo real.
No caso de mundo ficcionais mágicos, é necessário especificar quem tem poderes mágicos, quais poderes tem, como os manifesta e quais seus limites. Há uma janela de tempo para isso; há momentos propícios, na ficção, à apresentação de personagens e das características particulares do mundo em que vivem. O garotinho ao meu lado—consumidor ou participante de estórias—, mesmo sem qualquer domínio técnico, identifica intuitivamente que, naquele momento climático, não haveria espaço para introdução de novos poderes. A solução é ruim, porque fere um princípio estruturante da ficção. Cabe lembrar que esse princípio não é novo: Eurípedes era criticado por seu apreço por deuses ex-machina, ou seja: por introduzir algum deus ao final da tragédia que a encaminharia a seu final.
A ousadia narrativa de Rowling está diretamente relacionada a isso. Basicamente, seus adendos virtuais ferem um dos princípios elementares da constituição do discurso ficcional:
Mundos ficcionais podem ser construídos apenas internamente.
Mundos ficcionais podem ser interpretados apenas externamente.
Rowling não poderia acrescentar nada a seus livros senão dentro deles. É a esse princípio, elementar e intuitivo, que reagem os fãs da série, ao demonstrar certa suspeição das práticas digitais da autora; é o apego a esse princípio organizacional de todo o discurso narrativo que daria a leitores o direito—que Pennac não contabilizou—de ignorar tuítes autorais.
Criação e crítica: a Hermione negra
Cabe, porém, perceber que as travessuras de Rowling nem sempre são transgressoras. O caso da Hermione negra difere dos demais mencionados nesse sentido, e essa distinção é importante.
Conforme apontei anteriormente, a ficção e a crítica ocorrem em espaço separados. O tuíte de Rowling que oferece apoio a Noma Dumezweni, atriz que interpretou Hermione na Broadway, assemelha-se a uma peça crítica; a autora analisa a própria obra, constatando que não há provisão textual que barre a possibilidade de uma Hermione negra. Seu gesto não recria o mundo desde o lado de fora, mas profere um julgamento crítico.
Ainda, porém, que alguém fosse capaz de apontar, textualmente, que os livros são racialmente específicos (que eu saiba, ninguém o fez), isso seria um problema menor, e aqui Rowling também conta com o funcionamento do discurso narrativo—mais especificamente, do funcionamento da narração serializada.
Complexos transmidiáticos oferecem outra brecha a Rowling; gostem os mais aficionados ou não, a exigência de coerência interna é graduada: é mais forte dentro de uma única peça (uma lenda, um livro, um filme, etc.), mais fraca entre peças baseadas na mesma mídia (de um mito a outro, de um livro a outro, de um filme da franquia a outro, etc.) e muito mais fraca entre peças baseadas em mídias distintas (do mito à epopéia, do livro ao filme, etc.).
Ademais, as limitações naturais da memória e o caráter necessariamente coletivo das produções serializadas tornam dificílima a tarefa de vistoriar os mundos ficcionais já constituídos, de modo a expurgar qualquer incongruência. Exigências de ordem técnica—o afastamento de um ator em dada série, e a decisão de não eliminar a personagem, por exemplo—abrem o campo para ainda mais lapsos, aos quais não restará ao público senão aceitar e ignorar.
Assim, Rowling teria direito a certas mudanças temporãs, mas é importante notar que afrouxamento não é relaxamento. Lapsos e urgências justificam deslizes—geralmente menores, como o número de irmãos que alguma personagem tenha ou seus nomes, contanto que sejam apenas mencionados e nunca apareçam, por exemplo—; o que Rowling faz é introduzi-los deliberadamente.
Mesmo após esta exposição, porém, não há como atingir um veredito. As estórias podem ter autores, mas a arte narrativa em si é uma construção coletiva da humanidade; como tal, é diacrônica, inconsciente e coletiva. Quem há de determinar se as intervenções ex-machina de Rowling hão de seguir juntamente com a obra principal não sou eu, tampouco a própria escritora; são as gerações futuras de leitoras e leitores que, menos despreparados que nós, que assistimos ao despertar da era digital, já contarão com reações coletivamente construídas a semelhantes suplementos.