lei e ortografia
Pontuei, em mais de uma ocasião, que a sobrecarga de reformas ortográficas pode dificultar a absorção do mais recente acordo, pois o leitor é forçado, de toda forma, a conviver com textos que seguem padrões distintos.
Embora textos literários e filosóficos pareçam os melhores exemplos de textos sensíveis a revisões ortográficas, existe um outro conjunto de tipos textuais ainda mais sensível, por seu processo peculiar de composição e revisão, que os torna obrigatoriamente inconsistentes, sendo redigidos simultaneamente de acordo com mais de um acordo: os textos legais, aqui compreendidas as constituições, leis, decretos, etc.
Estes tipos textuais, de redação e aprovação coletiva por autoridades competentes, não admitem revisão ortográfica simples em suas fontes mais autorizadas: os Diários Oficiais, em primeiro lugar, e, secundariamente, os repositórios legais dos entes federativos (União, estados, municípios e Distrito Federal). Note-se, por exemplo, que qualquer lei publicada em meio digital contém ressalvas do tipo:
Este texto não substitui o publicado no D.O.U. de ____
O que equivale a dizer que qualquer discrepância (oriunda de lapso datilográfico, por exemplo) torna a versão do Diário Oficial como fonte primária.
Em segundo lugar, constituições só podem ser alteradas por emenda, e leis por outras leis, de modo que mesmo a mais simples revisão não pode ser simplesmente inserida no texto, por mais inócua que pareça à sua compreensão.
Assim, no Decreto-Lei nº 2oo/1964—que cria as entidades da chamada administração indireta—, coexistem as grafias emprêsa e empresa, sendo a segunda oriunda de alterações posteriores, como as inseridas pela Lei nº 7.596/1987; nas leis do Império, transcritas para meio digital muito posteriormente, encontram-se arcaísmos ortográficos como dellas, condemnações, geraes, portugueza e mez (como lemos, por exemplo, na Lei nº 11/1821). Mesmo uma lei que é letra morta, de valor estritamente histórico, é transcrita sem alterações.
Exemplo interessante de alteração estritamente redacional é o antigo Estatuto do Idoso, ora conhecido como Estatuto da Pessoa Idosa (Lei nº 10.741/2003); o Estatuto teve praticamente todas as ocorrências da palavra idoso, constantes da redação original, substituídas por pessoa idosa, por meio da Lei nº 14.423/2022—cujo único objetivo, expresso na ementa, é realizar tal alteração. A nova redação não altera em nada o escopo, aplicação ou interpretação de qualquer dispositivo, tão simplesmente limitando-se a adequar o texto à sensibilidade contemporânea no tangente a questões de gênero; mesmo assim, só pôde ser realizada por meio de lei, e é válida tão somente para esta lei: a Lei nº 10.048/2000—que trata de prioridade de acesso—teve os termos idoso e pessoas portadoras de deficiência respectivamente alterados para pessoa idosa e pessoas com deficiência somente em 2023, por meio da Lei nº 14.626/2023, que estendeu os direitos ali concedidos a pessoas com transtorno do espectro autista, pessoas com mobilidade reduzida e doadores de sangue.
Como se vê, nenhum trema, acento ou vírgula pode ser removido da lei sem que outra lei o faça, de modo que, num mesmo texto, podem coexistir diferentes acordos ortográficos. Os textos legais, muito infelizmente, são pouco conhecidos da população, e nem as escolas os ensinam (como, penso, deveriam); não obstante, são textos fundamentalíssimos, que obrigam a um cuidado transcricional e revisional com o qual nem Shakespeare, Camões ou à Bíblia são agraciados. Transitar de uma reforma a outra, como fizemos três vezes no correr do século XX, não apaga o uso corrente de textos seguindo normas distintas. Embora exista, sim, de minha parte, um viés emocional que me mantém preso à norma aprendida nos tempos de escola, parece-me irrazoável abundar em mudanças tão próximas umas das outras, especialmente se não eliminam de forma satisfatória os percalços de se redigir corretamente, e geram inconsistências (internas ou históricas) ao invés de saná-las.