Bestiário ou Cortejo de Orfeu (Le Bestiaire ou Cortège d’Orphée), Guillaume Apollinaire (1-6)
(1)
Orfeu (1)
Maravilhai do traço egrégio,
Quão forte, quão nobre, quão régio:
O traço é voz da luz, que a luz nos concedeu.
Qual Trimegisto, no Pimandro, a descreveu.
(2)
A tartaruga
Do trácio encantado, ó enleio!
Dedilho a lira junto ao seio.
Os animais em procissão
Ao som do casco, da canção.
(3)
O cavalo
Rijo e formal, meu sonho põe-te a cavalgar
Em carro d’ouro, meu destino a te guiar,
Rédea retesa e freia a feroz bizarria
Do verso meu, que impõe padrão à poesia.
(4)
A cabra do Tibete
Dessa cabra, o velocino,
Nem o de Jasão divino,
A tão alto preço ascendem
Quanto as mechas que me prendem.
(5)
A serpente
Pões-te no encalço da beleza.
Quantas fizeste já de presa,
E as vitimaste com dureza!
Cleópatra, Eurídice ou Eva,
Mais de uma sei que enviaste à treva.
(6)
O gato
Em minha casa, quero ter:
Arrazoada, uma mulher,
Um gato andando pela estante,
Amigos perto a todo instante,
Sem os quais não sei viver.
Notas do autor
(1.1-2)
Admirez le pouvoir insigne
Et la noblesse de la ligne.
(Maravilhai do traço egrégio,
Quão forte, quão nobre, quão régio:)
Homenageia o traço que formou as imagens, magníficos ornamentos dessa diversão poética.
(1.3-4)
Elle est la voix que la lumière entendre
Et dont parle Hermès Trismégiste en son Pimandre.
(O traço é voz da luz, que a luz nos concebeu.
Qual Trimegisto, no Pimandro, a descreveu.)
“E logo após”, lemos no Pimandro, “as trevas desceram… e delas sai um grito inarticulado semelhante à voz da luz.”
Essa “voz da luz” não seria o desenho, ou seja, o traço? E quando a luz se exprime completamente, tudo se colore. A pintura é propriamente uma linguagem luminosa.
(2.1a)
Du Thrace magique
(Do trácio encantado)
Orfeu nasceu na Trácia. Esse poeta sublime tocava uma lira que lhe dera Mercúrio. Era feita da carapaça de uma tartaruga, revestida de couro, com dois braços, cavalete, e cordas feitas de tripas de ovelha. Mercúrio deu liras iguais também a Apolo e a Anfião. Quanto Orfeu tocava e cantava, os animais selvagens vinham lhe escutar o canto. Orfeu inventou todas as ciências, todas as artes. Iniciado em mágica, conhecia o futuro e previu ao modo cristão a vinda do SALVADOR.
(3.1-2)
Mes durs rêves formels sauront te chevaucher,
Mon destin au char d’or sera ton bon cocher.
(Rijo e formal, meu sonho põe-te a cavalgar
Em carro d’ouro, meu destino a te guiar)
O primeiro a montar Pégaso foi Belerofonte, quando ia atacar a Quimera. Existem hoje muitas quimeras, e antes de combater qualquer uma, a maior inimiga da poesia, deve-se arrear Pégaso e atrelá-lo. Bem se sabe o que quero dizer.
Notas do tradutor
(1.4)
Hermès Trismégiste en son Pimandre
(Qual Trimegisto, no Pimandro)
Pimandro ou Pimander é o primeiro livro dos Corpus hermeticum, conjunto de tratados atribuídos a Hermes Trimegisto.
(2.1a)
Du Thrace magique
(Do trácio encantado)
A Trácia é uma região do sudoeste europeu, atualmente dividida entre Bulgária, Grécia e Turquia, limitada pela Cordilheira dos Balcãs (norte) e pelos Mares Egeu (sul) e Negro (leste).
(2. Nota do autor)
Anfion
(Anfião)
Filho de Zeus e Antíope, e esposo da rainha Níobe. Tocando sua lira, Anfião comandou que as pedras se ordenassem para formar os muros da cidade nascente de Tebas.
(3. Nota do autor)
Pégase, Bellérophon, Chimère
(Pégaso, Belerofonte, Quimera)
Pégaso é um cavalo alado, nascido do sangue de Medusa decapitada pelo herói Perseu; de uma sua pegada no monte Hélicon, surge a fonte Hipocrene, sagrada às Musas (cf. Ovídio, Metamorfoses, 4.785, 6.252-3). O herói Belerofonte, cujos feitos são narrados por Homero (Ilíada, 6.155-200), montou-o para derrotar a Quimera, tríplice fera com cauda de serpente, corpo de cabra e cabeça de leão (cf. Ilíada, 6.181-3).
(4.3a)
Jason
(Jasão)
Líder dos argonautas, chega com seus companheiros à Cólquida, em busca do velocino de ouro (velocino ou velo é a pele do carneiro, ainda com a lã), em posse do rei Eetes. Jasão passa nas provas impostas pelo rei com a ajuda da filha deste, Medéia.