Em artigos científicos, usa-se a primeira ou a terceira pessoa?

Em artigos científicos, usa-se a primeira ou a terceira pessoa?
Photo by Patrick Perkins / Unsplash

A objetividade e imparcialidade a que aspiram (por qual suspiram, numa parte infeliz dos casos) os textos técnicos, acadêmicos e científicos gera uma série de exigências ao redator; uma que causa bastante confusão é a pessoa do discurso através da qual o(s) redator(es) faz(em) referência a si.

Aprendemos ou ouvimos falar que um artigo, por ser objetivo, simula uma voz impessoal, razão pela qual a primeira pessoa do singular deve ser evitada, sendo substituída pela terceira pessoa do singular. Segundo esta visão, a pessoalidade de um autor que se refere a si mesmo deve ser afastada. Nem todos os artigos, porém, são escritos desta forma, e alguns autores recorrem à primeira pessoa, do singular e mesmo do plural. Qual seria a forma correta?

Não pretendo solucionar o problema; creio que é algo que cada autor decide por si, ou que será decidido conforme exigências externas (normas de um programa de pós-graduação, de um periódico, etc.); gostaria, porém, de oferecer minhas diretrizes particulares, que justificam meu próprio posicionamento:

Qual pessoa usar num artigo? Todas!

Não conduzo minha redação científica pela visão de que as opções são equivalentes, portanto, mutuamente excludentes; prefiro justamente vê-las como a vê a redação de textos mais informais e mesmo a fala, como complementares. O que segue tenta definir quais funções cada opção poderia assumir:

  • Terceira pessoa do singular: É usada como voz passiva sintética (faz-se x = x é feito) ou como sujeito indeterminado (necessita-se de x); ambas as formas omitem o sujeito gramatical e, no caso da voz passiva sintética, tornam opcional a explicitação do agente. Não se diz quem fez, pois não importa quem fez, pois qualquer um o faria, pois todos o fazem. Assim sendo, a terceira pessoa é melhor para a expressão de opiniões ou atos cuja autoria ou agência é difusa, confusa, demasiadamente comum e ao mesmo tempo incerta.
    Embora preferencial para certa visão de objetividade científica—pois simula que o artigo é uma voz que fala sozinha, um não-eu vindo de lugar nenhum, informado apenas pela própria racionalidade objetiva e sem qualquer vontade—, parece-me que deveria ser a menos freqüente, justamente porque opiniões devem ser sempre referendadas. Pessoalmente, não a uso para fazer referência ao autor.
  • Primeira pessoa do singular: Objetividade científica mais franca, em meu entendimento, exigiria justamente que um autor escrevendo sozinho fale de si como um eu, assumindo autoria e responsabilidade por seu texto e, desta forma, contribuindo para usa falseabilidade. Parece-me pouco producente simular a ausência de sujeito se o nome do sujeito está logo ali, e se, inclusive, não admitimos mais a publicação de texto científico inteiramente anônimo.
  • Primeira pessoa do plural: Em alguns casos, alguns autores adotam uma espécie de via média, empregando o plural majéstico; trata-se da primeira pessoa do plural usada em substituição à primeira pessoa do singular, dirimindo, de certa forma, a pessoalidade de um sujeito único, ou—quando empregada por potentados, como qualquer peça de Shakespeare que tenha um rei nos mostrará—fazendo com que assuma ares de grandeza condizentes com determinada posição de mando. O plural majéstico é um exemplo de nós exclusivo, i.e. refere-se a um grupo que exclui o ouvinte; se usado num artigo, portanto, exclui o leitor.
    Em meu entendimento, há dois melhores usos para a primeira pessoa do plural: o primeiro, consoante ao da primeira pessoa do singular, é referir a autoria do texto a um grupo de pesquisadores (afinal, trata-se, de fato, de um nós); o segundo seria o uso do nós inclusivo, ou seja, um uso que inclui o ouvinte/leitor na referência.
    Vejamos: ao longo do artigo, o autor conduz o leitor através de um trajeto textual; quando um autor diz a seu leitor conforme vimos acima, lembra-o do que viu juntamente com o autor, seu guia; quando diz conforme podemos observar, atenta para o fato de que o leitor está, naquele passo, vendo a mesma coisa que ele. A função de guia através de um processo teórico-metodológico que leva a resultados é, precisamente, uma das tarefas de um redator científico; este uso da primeira pessoa do plural me parece o melhor para engajamento do leitor no texto.

Como procurei demonstrar, não há que se falar em escolher uma e apenas uma das opções acima; todas podem ter função na redação do texto, conforme o que se esteja fazendo nesta ou naquela passagem; é possível mesmo contar com a capacidade de um leitor especializado para distinguir por si instâncias de nós inclusivo e de nós exclusivo, conforme os autores falem de si mesmos ou convidem o leitor a um passeio textual. Não me parece que haja verdadeiro ganho em objetividade ao se mascarar a referência a um sujeito humano: a ciência, enquanto um corpo de conhecimento, pode ser impessoal, mas ainda é feita por pessoas. Assumir esta pessoalidade é parte da estrita observância à exigência da falseabilidade científica.