Bestiário ou Cortejo de Orfeu (Le Bestiaire ou Cortège d’Orphée), Guillaume Apollinaire (24-30)
(24)
Orfeu (4)
Se canta a fêmea do alcião,
Se canta o Amor, sereia alada,
Tal melodia é maldição,
É desumana e malfadada.
Não ouças a morte que voa,
Mas do anjo a voz que o Céu ressoa.
(25)
As sereias
Sei lá eu, ó sereias, donde os vossos ais,
Que à larga, noite afora, tanto os lamentais?
Ó mar, como és, sou cheio de vozes tramando,
Meus navios são os anos, e singram cantando.
(26)
A pomba
Pomba, és espírito e és amor,
Que engendraste o Cristo Senhor:
Quem amas, quem amo é Maria,
E à minha eu bem desposaria.
(27)
O pavão
A cauda, abre em leque o pavão,
Cujas plumas arrasta ao chão,
Mais belo ainda parecendo,
Mas co traseiro aparecendo.
(28)
O mocho
No peito, hei um mocho sem luz
Que furo e furo à cruz conduz.
Ardor reduz-se a puro pus.
Quem tem-me amor, louvor me induz.
(29)
O íbis
Hei de entrar a sombra terrosa,
Morte certeira, que assim seja!
Latim mortal, fala assombrosa,
Íbis que o rio Nilo vagueja.
(30)
O boi
O querubim louva a morada
Dos céus, cos anjos partilhada,
Vida segunda, amigos meus,
Quando o quiser bondoso Deus.
Notas do autor
(24.1-4)
La femelle de l’alcyon,
L’Amour, les volantes Sirènes
Savent de mortelles chansons
Dangereuses et inhumaines.
(Se canta a fêmea do alcião,
Se canta o Amor, sereia alada,
Tal melodia é maldição,
É desumana e malfadada.)
Ao escutarem o canto da fêmea do alcião, os navegantes se preparavam para a morte, exceto em meados de dezembro, quando estas aves faziam os ninhos, e pensava-se, portanto, que o mar estava calmo. Quanto ao Amor e às sereias, tão harmonioso é o canto destes pássaros maravilhosos que a vida mesma de quem os escuta não é um preço alto demais a se pagar por tal música.
(30.1a)
Ce chérubin
(O querubim)
Entre as hierarquias celestiais, votadas ao serviço e à glória divina, distinguem-se seres de formas desconhecidas e da mais surpreendente beleza. Os querubins são bois alados, mas nada monstruosos.
(30.4)
Quand le bon Dieu l’aura permis.
(Quando aprouver ao bom Senhor.)
Os que exercem a poesia não buscam nem amam nada além da perfeição que é o próprio Deus. Essa bondade divina, essa perfeição suprema abandonam a vida de quem não visa descobri-las e glorificá-las? Parece impossível, e, segundo creio, os poetas têm direito de esperar, após a morte, a felicidade eterna que vem do conhecimento completo de Deus, ou seja, a beleza sublime.
Notas do tradutor
(24.1)
La femelle de l’alcyon,
(a fêmea do alcião)
O alcião, alcíon ou alcíone é uma ave mitológica portadora bom agouro; a transformação em ave da rainha Alcíone, filha de Éolo, quando da morte marinha de seu esposo, o rei Ceix ou Ceíce, é contada no livro undécimo das Metamorfoses de Ovídio. Também designa o maçarico, ave costeira (família: Charadriiformes, ordem: Scolopacidae), que parece haver herdado os agouros da mitologia.
(24.2)
L’Amour, les volantes Sirènes
(o Amor, sereia alada)
A sereia não tem a aparência descrita na Odisséia (12.39-45); na Argonáutica (4.898-899), é descrita como metade mulher, metade pássaro, e como tal figura em ambas as xilogravuras de Raoul Dufy, para este poema e para o seguinte. O Amor, mesmo não sendo propriamente uma ave, é personificado como um deus alado.
(28.1-4)
hibou… clou… décloue… recloue… bout… loue
(luz… à cruz conduz… reduz… pus… induz)
Literalmente, a quadra seria traduzida por: Meu pobre coração é uma coruja, que pregam, despregam, repregam; de sangue, de ardor está exausto; a todos que me amam, eu vos louvo. A monorrima em –ou(e) e as variações conjugadas do verbo clouer (pregar) imitam o piar da coruja. Guarda semelhanças, não sei se acidentais, com o versinho mnemotécnico que ensina as crianças francesas quais palavras terminadas em –ou têm seu plural em –oux (ao invés de –ous): viens mon chou, mon bijou, mon joujou, sur mes genoux, et jette des cailloux à ce hibou plein de poux (vem, meu chuchu, meu docinho, meu benzinho, senta-me ao colo e joga cascalhos nessa coruja cheia de pulgas). Embora esse texto, puramente didático, não deseje fazer sentido, compartilha com o nonsense mais propriamente poético (pense-se nos poeminhas dos livros de Alice e nos limericks de Edward Lear) uma nota de crueldade—feita, como na quadra brincalhona, não menos onomatopaica nem mais semanticamente conexa de Apollinaire, justamente à coruja.
(29. Título)
Íbis
(Íbis)
Resumo a simbologia associada a essa ave a partir da Encyclopédie de symboles (1996): ave sagrada no Egito antigo, consagrada ao Deus da sabedoria, Thot, e embalsamada em jarros. Vendo-a sob luz negativa, o bestiário medieval salienta que, por não saber (nem desejar aprender a) nadar, alimenta-se de peixes mortos e carcaça, e dá ovos de serpentes aos filhotes; como tal, é a alegoria do pecado obstinado, que não busca o alimento vivo através do batismo, mas se satisfaz com os frutos corruptos da carne.
(30.1a; nota do autor)
chérubin
(querubim)
A iconografia cristã mais basal retrata os querubins não como os anjinhos gorduchos que vemos na xilogravura de Dufy, tampouco os resume a “bois alados”: com base em Ezequiel (10, 14), seriam seres de quatro faces (touro, homem, leão e águia) e quatro asas; em derivação daí, e com base no Apocalipse (4, 7), os evangelistas foram por vezes representados pelos mesmos quatro seres: Mateus (homem), Marcos (leão), Lucas (touro) e João (águia). Note-se, entretanto, que Apollinaire não intitula a quadra Le Taureau (O touro), mas Le Bœuf (O boi), castrando destarte a referência.