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Como assim, você ainda usa o trema?

Como assim, você ainda usa o trema?
Photo by Surendran MP / Unsplash

Certa feita, ao repostar num grupo de tradutores um dos textos que publico aqui, um dos membros comentou que parara de ler logo no início, ao se deparar com o primeiro trema; munido de uma gentileza que, lamento dizer, não era incomum, mandou-me voltar ao século XIX (não me ocorreu informá-lo de que a escrita do século XIX seria de base etimológica, bem distante da que adoto, com ou sem trema; consolo-me sabendo que não o diria se me ocorresse).

Com efeito, qualquer leitor deste blogue notará a presença de tremas e outros acentos dos quais a ortografia culta foi aliviada pelo Acordo Ortográfico de 1990, de uso obrigatório desde 2016. Por que, então, insistir neles? É o que gostaria de justificar aqui.

Em primeiro lugar, faço notar que se trata, sim, de preferência pessoal, empregada única e exclusivamente em textos meus; como tradutor ou revisor, não só emprego a ortografia vigente, mas também me eximo de preferências pessoais, quando a forma que emprego já não tem mais o vigor de norma: não corrijo constar em por contar de (forma que prefiro, mas que perdeu força mesmo na escrita culta) nem saio suprimindo todo e qualquer pronome reto que possa ser subentendido pela morfologia verbal. Atuo, assim, com parâmetros duplos, e me desloco entre dois (ou mais) conjuntos de regras.

Em segundo lugar, minha não-adesão ao novo acordo talvez seja, de fato parcial, especialmente no tangente ao uso do hífen; nem sempre é fácil encontrar os acordos anteriores (falarei deles abaixo), de modo que sócio-econômico e microondas serão grafados como me lembro, mas interrelação talvez esteja mais moderninho. Claro, meus pés-de-moleque estão rigorosa e indevidamente hifenizados. Novamente, trata-se de preferência pessoal aplicada a textos pessoais, com uma ou outra motivação, às quais passo a detalhar abaixo.

Um acordo não é uma lei. Ninguém precisa segui-lo e, com o advento da possibilidade de uma escrita informal oralizada massificada por redes digitais, ninguém mesmo o segue, nem sempre com prejuízo de inteligibilidade. Os próprios falantes cultos—especialmente os que, para pouparem uns trocados em revisão, desgastam a norma—deslizam em inúmeras áreas da norma culta, não só na ortografia. Em alguns casos, errado mesmo parece o acordo, já demasiadamente atrasado frente às mudanças da língua: a voz passiva sintética (faz-se um singular/fazem-se plurais) vem perdendo espaço nas produções cultas; quando utilizada no sentido de indeterminação do agente, a perífrase verbal é preposta sem concordância (foi feito uma feminina/foi feito plurais). Essa construção não causa qualquer problema de inteligibilidade, e deveria, cedo ou tarde, ser considerada ao menos uma substituta viável da construção ora normativa (foi feita uma feminina/foram feitos plurais). O pronome se, na função de índice de indeterminação do sujeito, é outro animal ameaçado: o costumeiro vende-se já é, faz algum tempo, substituído por vendo ou mesmo vende.

Em segundo lugar, conforme pontuei em outra oportunidade, a proposição de mais de um acordo ao longo do século XX gera problemas, pois faz com que distintas normas convivam em publicações ainda disponíveis, mesmo que em sebos, bibliotecas públicas ou acervos pessoais. A norma, para ter força verdadeiramente normativa, precisaria de uma longevidade que à(s) nossa(s) sempre faltou.

Em terceiro lugar, e especialmente no que tange à tradução poética, a legibilidade me importa mais que a norma; o novo acordo me parece pintalgado de problemas, gerando ilegibilidades ao invés de suprimi-las, e dificultando a identificação da pronúncia culta que exige. Comento abaixo alguns exemplos:

O novo acordo não extinguiu o dígrafo gu em exntinguir, mas sim o trema que (aqui, por ausência) impedia o leitor de lê-lo como extingüir. Para saber se, em exangue ou quintessência, temos ditongos ou dígrafos, faz-se necessária a consulta a dicionários publicados antes da vigência da norma—e o afirmo com alguém que já fez isso.

O mesmo vale para acentos diferenciais: embora pareça difícil que um leitor confunda uma forma de bolo com a forma do triângulo, sendo ambas bastante comuns, a ausência do diferencial no verbo para gera, sim, confusão com a preposição homófona e homógrafa, muito mais freqüente; mais de uma vez, custei a ler uma passagem até me dar conta de que a preposição, era, na verdade, verbo. Prefiro o anacronismo ortográfico pára a qualquer risco de incompreensão desnecessária.

Em nome de uma confusa noção do que seria corrente ou anacrônico no idioma, e creio também haver pontuado algo semelhante alhures, o acordo vigente ainda não incorporou formas mais do que estabelecidas: performance, já grafada em todo canto sem itálico e firmemente dicionarizada, ainda é vista como estrangeirismo—fato evidenciado pela ausência do acento obrigatório às proparoxítonas—; super e hiper ainda não tiveram seu caráter popular de adjetivos/advérbios reconhecido, encontrando-se ainda como prefixos greco-latinos destituídos do acento que, pela regra geral das paroxítonas, já poderiam ostentar. Trata-se de uma modernização purista, que, ao mesmo tempo que dita como devemos pronunciar as palavras, subtrai os elementos ortográficos que possibilitam localizar a pronúncia correta.

Por falar em pronúncia e em morfologia anacrônica, termos como subsídio, abrupto e trânsito têm pronúncias que desacordam do acordo, pois a ortografia acordada não a evidencia: ninguém errará a pronúncia de trânsito, mas, a rigor, não concorda com a regra: por que trânsito e ânsia têm pronúncias distintas para o s, estando a primeira em desacordo com a norma? Simples (!): trans–, como o sub e ab dos outros dois exemplos, são prefixos. A pronúncia proposta pela norma só seria evidenciada se houvesse hífen nos três casos, mas o fato é que, para o leitor, estes prefixos perderam seu caráter histórico, havendo há muito sido incorporados à raiz: a rigor, deveríamos já escrever trânzito, e pacificar a divisão silábica a-brup-to (ao invés de forçar o horroroso ab-rup-to a ser culto, ou a existir); no caso de subsídio, deve-se notar que a consoante vozeada b torna eufônica a pronúncia z, fenômeno fonético bastante comum; talvez já devêssemos, sim, grafá-la subzídio, aceitando, no mínimo, ambas as pronúncias, ao invés de forçar uma tendência fonética contraintuitiva a ser a única normativamente aceita.

Finalmente, e também seguindo a esteira do contraintuitivo, a eliminação do hífen de diversas palavras compostas é outro lapso, que desconsidera o trajeto normal do processo de lexicalização de sintagmas, e que ainda tem impacto negativo na dicionarização de termos. Justificar que obra-de-arte não necessita de hífen pois a preposição já é elemento de ligação é esquecer que, em elemento de ligação, o de é igualmente elemento de ligação, sem, entretanto, denotar que se trata de palavra composta. A hifenização é contrapartida ortográfica do processo de lexicalização dos compostos, separando os já aceitos dos que ainda têm status de colocação ou construção recorrente. É um desserviço removê-lo.

Essa remoção se torna ainda mais absurda quando o item removido é acrescentado desnecessariamente a outros termos: o mais famoso exemplo de inclusão do hífen é micro-ondas, pois, agora, compostos que gerem encontro de vogais idênticas devem ser hifenizados. Ocorre que, aqui, a pronúncia não é afetada de modo algum pela repetição vocálica—rara em português e sem caráter de dígrafo. As poucas instâncias deste encontro, derivadas ou não de afixação, indicam pronúncia reiterada: vôo, zoológico, compreensão, etc. Em minha escrita pessoal, honestamente, recuso-me a retirar um sinal de onde é necessário para metê-lo onde é inútil.

Em todos estes casos, ao menos do ponto-de-vista fonético (retorno agora ao ponto da discussão), opto por uma ortografia que julgo, se desusada, mais usável, se ilegítima, mais legível. Seguramente, minhas próprias escolhas, pela natureza mesma da língua, podem incorrer em inconsistências vindas do hábito ou da ignorância, mas tal incompletude não me impede nem de tentar, ao menos, ser mais coerente, nem, francamente, de ter gostos e preferências pessoais. Sigo tranqüilo em minhas escôlhas.

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