Dois adendos sobre tradução e uberização
Recentemente, escrevi sobre o processo de uberização dos serviços de tradução por meio de plataformas de contratação de freelancers, a partir da comparação com o mais óbvio exemplo—aquele dos motoristas e entregadores. Gostaria de acrescentar àqueles comentários duas notas—uma pública e uma pessoal.
A nota pública diz respeito ao fato de que, no Reino Unido, a Justiça determinou recentemente que os motoristas de Uber sejam considerados trabalhadores, com direito a 13º, férias e aposentadoria:
No Reino Unido, o Uber está recategorizando seus 70.000 motoristas, após a Suprema Corte manter a decisão de fevereiro de 2021, segundo a qual os motoristas devem ser classificados como trabalhadores, e não como contratados autônomos.
A empresa afirmou que, como trabalhadores (workers)—uma classificação específica das leis trabalhistas do Reino Unido, ligeiramente abaixo de “empregados” (employees)—, os motoristas terão direito a salário mínimo, férias e aposentadoria. A mudança não foi estendida aos entregadores do Uber Eats, apenas aos do serviço de caronas. (Minha tradução.)
A decisão reforça a compreensão de que estes trabalhadores não atuam autonomamente, portanto, empresas que adotam este sistema estão, na verdade, lançando mão de um subterfúgio técnico para escamotear direitos trabalhistas. Também mostra a vital importância de se regularizar serviços de empresas oferecidos por meio de aplicativos.
A nota pessoal diz respeito a um e-mail que recebi ontem (11/abr) da plataforma SmartCAT. Em outra ocasião, comentei o fato de que a plataforma libera a contratação de serviços de qualquer tamanho. Recentemente, o e-mail padronizado que recebemos para o convite mudou; agora, como é possível ver na imagem abaixo, o tamanho da encomenda foi omitido; para sabê-lo, é necessário aceitar o convite, e ainda assim só será possível se outro tradutor não o houver aceitado antes. Também é digno de menção o fato de que a encomenda foi solicitada para o mesmo dia em que o e-mail foi enviado—um domingo.
A encomenda em questão, para minha surpresa, ainda não havia sido cancelada cinco horas após o envio do e-mail; trata-se de uma revisão de 163 palavras. Apesar da data de contratação coincidir com o prazo final, nenhuma tarefa foi delegada ao longo do dia; na manhã seguinte, ao tentar acessar a encomenda, recebo a estranha mensagem de que outro freelancer a havia aceitado.
Não é a primeira vez que aceito uma encomenda pela plataforma sem que nenhuma tarefa me seja delegada. O trabalhador, como se vê, está sujeito a aceitar uma encomenda às pressas, às cegas, e sem nenhuma garantia de que a aceitação implique que, de fato, haverá trabalho.
Se os motoristas possuem argumentos—e mesmo decisões judiciais—a favor de que sejam considerados funcionários das empresas que oferecem aplicativos, profissionais como tradutores e revisores—cujo público nem sempre requer trabalhos regulares, tampouco demanda um volume de encomendas que justifique dedicação exclusiva—parecem carecer de meios para legitimar legal e coletivamente proteção contra práticas abusivas.
Outra diferença significativa talvez seja a capacidade de organização laboral: os motoristas atuam como funcionários de uma empresa, formando grupos e concebendo-se a si mesmos como parte de um coletivo; apesar de contarem com um sindicato, tradutores parecem ainda mais distantes de semelhante estruturação de classe.