Numa resenha recolhida em Discusión, o escritor argentino Jorge Luis Borges compara sua atitude perante questões teológicas à dos cristãos argentinos:
Los católicos (léase los católicos argentinos) creen en un mundo ultraterreno, pero he notado que no se interesen en él. Conmigo ocurre lo contrario; me interesa y no creo.
(Obras completas, 1996, vol. 1, p. 281.)
Crer num livro que não se leu direito é crer no mais elogioso espelho. As notas abaixo—a primeira escrita em 15 de outubro de 2018, a segunda em 15 de outubro de 2022, ambas durante período eleitoral—visam refrescar a memória de quem se julga demasiadamente cristão com base em seus ódios grosseiros; de quem tem demasiada fé na Bíblia para testá-la com a heresia de uma leitura.
(1)
Vai votar pela Bíblia? Então é melhor ler direito…
Caro eleitor cristão. Se você planeja calcar seu voto na Bíblia ou, pior, na palavra do pastor, ao invés de pesar as propostas de seu candidato, aqui vão alguns lembretes sobre o que as Escrituras de fato têm a dizer sobre essa atitude perigosa:
Cuidado com o fermento dos fariseus
Os Evangelhos, Mateus em especial, abrem fogo pesado contra fariseus, saduceus e escribas: são chamados “raça de víboras” por João Batista e Jesus (Mateus 3,7; 12,34; 23,33; Lucas 3,7); a má fama que recebem é tanta que fariseu, hoje, é sinônimo de hipócrita.
Trata-se de grupos com importante representação na vida religiosa e jurídica dos judeus do período de Jesus; são grupos de elite, com acesso ao sinédrio e a Pilatos. (Por exemplo: José de Arimatéia, descrito como homem rico [Mateus 27, 57] e membro do sinédrio [Marcos 15, 43; Lucas 23, 50-1], tem acesso ao governador; por isso, é ele quem pede o corpo de Cristo [Mateus 27, 57, Marcos 15, 43, Lucas 23, 50-52, João 19, 38]. Note-se, ainda, que os Evangelhos parecem divergir quanto ao voto de José de Arimatéia: Marcos [14, 64] diz que todos os membros votaram pela condenação, mas Lucas [23, 51] adverte que José discordava dos demais.)
Será que essa descrição não soa familiar a você? Será que ler as Escrituras não lhe permite reconhecer quem seriam, hoje, os fariseus profanando o templo? Todos os avisos contra falsos profetas no Novo Testamento (Mateus 24, 23-28; Marcos 13, 21-23) se dirigem especialmente a pessoas como Edir Macedo, Silas Malafaia, Marco Feliciano, Valdomiro Santiago, que transformam a fé em negócio. O seu pastor milionário é um dos vendilhões a quem Jesus expulsou do templo (Mateus 21, 12-13; Marcos 11, 15-18; Lucas 19, 45-46; João 2, 14-17); diga-se de passagem, os fariseus planejaram matar Jesus depois dessa expulsão (Mateus 21, 14; Marcos 11, 18; Lucas 19, 47).
Jesus pregou aos mais pobres e humildes, e, ao enviar seus apóstolos, proibiu-os de acumular riquezas (Mateus 10, 9-10; Marcos 6, 8-9; Lucas 9, 3). Jesus também foi claro sobre a impossibilidade de pessoas ricas entrarem no Reino dos Céus (Mateus 19, 24; Marcos 10, 25; Lucas 18, 25). (Enfatizo textualmente o que as passagens citadas demonstram: essas advertências contra os ricos aparecem nos três evangelhos sinóticos.) Por que você, que é humilde, deveria escutar milionários, seja em religião, seja em política? Você acha que estão lhe falando para beneficiar a você ou a si mesmos?
Fake news é falso testemunho
Os fariseus e escribas condenaram Jesus Cristo com base em falsos testemunhos (um desses testemunhos é claramente contradito pelas próprias escrituras: afirmam que Jesus pregava contra o pagamento de impostos; como veremos mais abaixo, Jesus aconselha seu pagamento); são os grupos que compraram a tradição de Judas.
Aquela sua “tia do WhatsApp”, que espalha notícias aberrantes sem comprovar antes se são verdadeiras, já testemunhou contra o Cristo em Mateus 26, 21 e Marcos 14, 58. Testemunhar sem provas, contra quem quer que seja, é agir conforme se agiu contra o Cristo, e isso deveria significar algo para vocês.
Se adivinhação é abominação, não adivinhe
Agora, se você está justificando seu voto na aparição dos nomes Hadade e Jair no Antigo Testamento, como já vi fazerem, vamos a alguns fatos:
Hadade se levanta contra Israel por intervenção do Senhor (1 Reis 11, 14 e 25). Não deixa de ser um emissário divino, como foram todos os que se levantaram contra Israel por seus crimes. Se você realmente quer traçar um paralelo entre Hadade e Haddad, pense nisso primeiro.
A Bíblia cita mais de um Jair; talvez o mais importante seja o de Juízes 10, 3. Mas o seu Jair, o candidato, também se chama “Messias”. Não seria isso um indício claro de que é um dos falsos profetas que dizem vir em nome do Senhor? Ou será que, por causa do nome, vocês estão pensando em crucificá-lo para ver se ressuscita?
Finalmente, lembre que usar a aparição de nomes na Bíblia para tentar ler o futuro é uma forma de adivinhação. Usar a Bíblia como oráculo não deixa de ser adivinhação, e você deveria saber muito bem que a adivinhação é severamente condenada (Levítico 20, 27). Se você estiver adivinhando baseado na Bíblia, talvez devesse considerar se entregar para apedrejamento, conforme descrito na passagem relevante.
Dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus
A famosa passagem sobre “dar a César o que é de César” (Mateus 22, 15-22; Marcos 12, 13-17; Lucas 20, 20-26) tem duas funções importantes: separa Igreja e Estado e mostra que Jesus não tinha interesse em realizar nenhum tipo de revolução social. Também é importante lembrar da anedota na qual se reporta o único milagre que Jesus fez em benefício próprio: Pedro, a mando de Jesus, pesca um peixe que contém moedas na boca; o milagre tem por objetivo auxiliar Jesus e seu apóstolo a pagarem seus impostos (Mateus 17, 24-27). Finalmente, os apóstolos, ao serem enviados, também não recebem nenhum tipo de instrução quanto a intervirem politicamente no mundo.
Se o seu pastor está pregando política desde o púlpito, não só está pecando—afinal, o púlpito é de Deus, não é de César—, mas incorrendo em crime eleitoral. Nenhum pastor deveria, para você, ter mais autoridade que as Escrituras, e tanto as Escrituras quanto nossa lei eleitoral condenam a atitude de seu pastor. Não se deixe enganar. Esta é outra prova clara de que você está ouvindo falsos profetas.
Não é uma boa idéia usar religião para justificar seu voto. Cristo separou claramente as duas coisas, pois seu Reino não era deste mundo. Proteja-se contra quem quer tentar usar sua fé contra você. Contra quem tenta usar essa fé para jogar você contra aqueles que você ama, e para atentar contra a vida deles. Tome cuidado.
(2)
Paulo, presidiário, ou: Direito e cidadania
Muitos dos que se dizem cristãos, mas usam as Escrituras como arma e justificativa para destilar ódio, tendem a se esquecer de diversas passagens importantes, ou ler passagens supostamente relevantes de forma estropiada. O caso do apóstolo Paulo, perseguido pela alta cúpula da sociedade judaica dentro do sistema jurídico romano, mostra-nos a importância de não julgar precipitadamente quem é acusado responde por algum crime; mais importante, mostra-nos que o direito a cidadania defendem os inocentes contra acusações falsas.
No 22o capítulo dos Atos dos Apóstolos, lemos que o discurso de Paulo contrariou alguns membros da comunidade judaica em Jerusalém, que começaram a pedir sua morte. Paulo foi então preso pelas autoridades romanas; os romanos, porém, não puderam agrilhoá-lo, pois era cidadão romano. Os capítulos seguintes acompanham suas tentativas de defesa, apelando a instâncias cada vez mais altas: O Sinédrio judeu (23), o governador Félix (24), e o rei Agripa (25-26).
Como cidadão romano, Paulo tem proteção especial. Paulo tem direitos. Os Atos dos Apóstolos, em seus capítulos finais, mostra-nos a importância do devido processo legal e da justiça perante aqueles que são perseguidos; mostra-nos a importância da cidadania para a proteção da vida dos dissidentes contra o ódio das classes dominantes (certamente, o que o Novo Testamento, muitas vezes, chama indistintamente de “judeus” são os membros mais endinheirados da comunidade judaica, aqueles justamente que se beneficiam com as injustiças).
Não há dúvidas de que o Novo Testamento considera Paulo justo, e seus acusadores injustos; não há dúvidas de que o devido processo legal foi o escudo com o que Paulo se defendeu; também é importante lembrar que Paulo não se recusa ao devido processo legal, e que permanece preso.
Ironicamente, pessoas presas injustamente são, muitas vezes, as primeiras apelarem ao devido processo legal. Mais do que justiça para si, buscam a retificação das injustiças inerentes ao próprio sistema judicial.
Dizer-se “cristão” com um copo de cerveja ou arma na mão, e ignorar a importante lição dos Atos dos Apóstolos sobre tolerância e cidadania, sobre o devido processo legal e o ódio contra inocentes perseguidos é, no mínimo, estranho.
Nenhum dos dois candidatos à presidência da república—nenhum—é apóstolo ou enviado direto do céus; nenhum livro das escrituras—nem no Antigo nem no Novo testamento—mostra reis ou potentados como enviados divinos, apenas como seres humanos aconselhados por enviados (verdadeiros ou falsos).
Mas um dos candidatos à presidência da república, como Paulo, foi vítima de campanhas difamatórias pela classe endinheirada; um deles foi preso, sem se recusar a permanecer preso, e apelando ao devido processo legal para comprovar sua inocência.
As escrituras não ensinam quem será ou não enviado do céus em tempos futuros, mas ensinam, isso sim, a termos cautela com nossos ódios, e a lermos os sinais de que alguém está sendo perseguido, para não cometermos as mesmas injustiças cometidas contra Jesus e Paulo.
O verdadeiro cristão escuta e não odeia. O verdadeiro cristão conhece a importância da cidadania e do direito. O verdadeiro cristão está atento à justiça ou injustiça dos processos legais, especialmente aqueles motivados por ódio.