Imagine uma estátua: Monica Lewinsky, tradução e infâmia
Em 2018, a premiada produtora e diretora Blair Foster dirigiu a série The Clinton Affair, em seis episódios. A 13 de novembro, Monica Lewinsky, uma das personagens-chave do escândalo envolvendo o ex-presidente dos Estados Unidos, Bill Clinton, falou à revista Vanity Fair sobre suas razões para aceitar participar do documentário e revisitar as memórias dolorosas do ano de 1998:
Em 2004, enquanto promovia sua autobiografia, Minha vida, Bill Clinton concedeu uma longa entrevista a Dan Rather. Rather perguntou a Clinton porque manteve comigo um relacionamento indevido. (As discussões sobre o assunto raramente admitem que não fui a primeira com quem manteve relações extraconjugais.)
A razão dada foi: “Porque eu podia.” (Sim, é uma citação direta.)
Porque escolhi participar da série-documentário? Por uma razão principal: Porque eu podia. Ao longo da história, as mulheres vêm sendo difamadas e silenciadas. Agora, é nossa vez de contar nossas próprias estórias em nossas próprias palavras. […] Posso não gostar de tudo o que foi incluído ou cortado da série, mas gosto do fato de que a perspectiva está sendo moldada por mulheres. Sim, o processo de filmagem foi excessivamente doloroso. Mas espero que, ao participar, ao contar a verdade sobre um período de minha vida—um período de nossa história—, possa ajudar a garantir que o que me aconteceu jamais torne a acontecer a outra jovem em nosso país. (Monica Lewinsky, “Who gets to live in Victimeville?” Vanity Fair, 13/nov/2018. Minha tradução.)
Na citação, difamadas traduz o inglês traduced. O Oxford Dictionary define o verbo traduce como segue:
Falar mal ou mentir (acerca de alguém) de modo a prejudicar sua reputação. (Oxford Dictionary, minha tradução.)
A ligação entre traduce e translate é evidente. Em algum período da língua inglesa, traduce foi uma das muitas opções para significar “tradução” (incluindo outras como reduced into English e mesmo o verbo englished). O desenvolvimento da língua estabeleceu translate como “traduzir” e traduce como “difamar”; em línguas românicas como o espanhol, o português e o francês, a mesma etimologia de traduce gerou os termos para “traduzir”; etimologia semelhante à de translate gerou, em nossa língua, tra(n)sladar, que manteve de modo mais marcado a conotação de deslocamento espacial.
A metáfora espacial de levar algo de um lugar para outro está na base da tradução e do traslado. A passagem metafórica dos objetos físicos para os conteúdos mentais, porém, acrescentou novas nuances ao problema: para que um artefato africano seja devolvido pelo governo francês ao Benin, é necessário que se o embale. Conteúdo e continente não se contaminam mutuamente, e o objetivo do continente é a exata e precisa preservação do conteúdo, para que chegue ao destino tal qual, como se não houvesse empreendido as viagens de ida e volta.
Não assim com as línguas, e com os conteúdos que veiculam. Imagine uma estátua; pode ser uma escultura abstrata, a representação de um animal, pessoa ou objeto. Imagine-a, porém, dotada de uma peculiaridade: só pode existir se estiver embalada. Imagine uma estátua cuja forma, material, coloração e densidade finais sejam somente possíveis e determináveis através da caixa usada para levá-la de um lugar a outro.
A estátua existe, e pode inclusive mudar de caixa; mas nunca migra integralmente; não se quebra, mas está sempre aos pedaços; nada perde, mas nunca está completa; não se altera, mas já não é exatamente como antes. Forma, cor, material e densidade são aproximativos, e é difícil dizer o quanto mudou.
Semelhantes continentes, produtores de seus próprios conteúdos e deles inseparáveis, são as línguas naturais; esses delicados translados de caixa são todas as formas de representação de um texto por outro, todas as reescrituras (para usar o termo de André Lefevere), dentre as quais a tradução.
As línguas naturais são formas de representação do mundo (não são apenas isso, mas são também isso); as traduções, formas de representação de representações prévias. Representações em segundo grau. O interessante histórico de traduce em inglês revela a encruzilhada do espacial ao conceitual, da verdade à representação, da preservação à infâmia.
E assim voltamos a Lewinsky, na encruzilhada representacional: as mulheres, mal (ou maldosamente) traduzidas pelo olhar masculino, desejam assumir para si o controle das próprias representações; como Lewinsky demonstra, isso ocorre tanto individualmente (contar a própria história) quanto coletivamente (e edição feminina do relato). A responsabilidade dos mediadores culturais se encontra aqui: nessa delicada encruzilhada onde se confundem reproduzir e distorcer, trasladar e trair.