Como se erigem os monumentos: um pós-escrito

Como se erigem os monumentos: um pós-escrito

Em a história não é uma estátua, comentei a recente destruição de monumentos históricos por ativistas. Após sua conclusão, deparei-me com dois vídeos tratando da problemática dos monumentos públicos no sul dos Estados Unidos.

O primeiro vídeo foi produzido pelo canal Vox, intitulado How Southern socialites rewrote Civil War history (Como socialites sulistas reescreveram a história da Guerra Civil); postado em outubro de 2017—muito provavelmente motivado pelas discussões acerca (e derrubadas) de monumentos confederados, que pularam nos Estados Unidos nos anos imediatamente anteriores—, ilumina um pouco mais a questão de por que alguns grupos sentem que homenagens a figuras racistas devem ser retiradas de locais públicos.

O vídeo narra a intensa atividade política das United Daughters of the Confederacy (UDC)—organização sul-estadunidense fundada em 1894, composta por mulheres brancas da elite sulista—; um de seus principais objetivos é manter viva a cultura sulista, e acima de tudo sua versão da Guerra Civil.

Intensamente ativa até aproximadamente o final da Primeira Grande Guerra, a UDC fez lobbying para a ereção de inúmeros monumentos homenageando confederados nos estados do sul, estrategicamente erigidos em locais públicos de grande visibilidade.

A UDC também atuava junto às crianças: sua constante atividade pedagógica incluía a formação de um clube para crianças—onde memorizavam a versão sulista das razões e do desenrolar da guerra, desenvolvendo um senso de orgulho relacionado à versão dos fatos que lhes era inculcada—, a redação de livros didáticos de história, o controle sobre quais livros-texto seriam adotados para o ensino de história pelas escolas, e a marcação de livros “injustos para com o Sul” em bibliotecas.

A versão desenvolvida nesses livros-texto nega a centralidade da manutenção da escravidão como principal causa da guerra, enaltece os “heróis confederados”, e romantiza a instituição da escravidão. O resultado pode haver sido o surgimento da geração segregacionista, que mais tarde lutaria contra o movimento dos direitos civis. (Acerca disso, veja-se o comentário abaixo ao segundo vídeo.)

Em retrospecto, além de nos mostrar como alguns desses monumentos passam a fazer parte da cidade—através de um polivalente lobbying que busca controlar quais versões da história circulam, especialmente entre as crianças—, o exemplo da UDC, a ouvidos brasileiros, pode soar como um versão avant la lettre da Escola sem Partido: no artigo que mencionei ao começo, cito a opinião publicada no blogue Não me Kahlo, que qualifica tais monumentos como discurso de ódio; aqueles que conseguirem enxergar a relação entre o trabalho da UDC e o movimento brasileiro de controle ideológico em escolas talvez compreendam um pouco melhor os fundamentos de tal qualificação.

Finalmente, tal atuação feminina talvez nos faça pensar acerca das relações entre o tripé gênero, raça e classe: como ressalta o vídeo, estas mulheres brancas de elite tiveram ampla influência política e cultural (ou política porque cultural) antes mesmo de terem direito a voto.


O segundo vídeo, de responsabilidade do canal Origin of Everything, intitulado Why Are There SO Many Confederate Monuments? (Por que há tanto monumentos aos confederados?), foi postado em agosto de 2109, e traz um apanhado histórico mais amplo sobre as origens de tais homenagens públicas.

No breve apanhado histórico apresentado—que busca qualificar a discussão acerca da manutenção de tais obras em locais públicos, e da função que servem enquanto “arte pública”—, é possível ver a relação entre interesses políticos e a manipulação do imaginário popular por meio dos espaços coletivos. Note-se que o vídeo enfatiza não apenas a existência das estátuas, mas principalmente sua quantidade: a contagem apresentada é de 780 monumentos existentes nos estados confederados.

Vale a pena reproduzir brevemente esse apanhado: A Guerra de Secessão ocorreu entre 1861 e 1865; os estados confederados, ao sul dos Estados Unidos, buscavam sua independência; o pivô da disputa, que levou ao rompimento com os demais estados da federação, foi a manutenção da escravidão institucionalizada, desejada pelo sul. Após o final da guerra e ao longo dos anos 1870, ocorreu o período de reconstrução do Sul derrotado; durante este período, o sul era parcialmente controlado pelos estados do norte, e os símbolos confederados foram removidos de espaços públicos. O período que se segue é chamado de pós-reconstrução, e vai aproximadamente da década de 1880 à de 1920. Entre o final do período anterior e o início deste, vê-se o recrudescimento do sentimento de supremacia branca, e o desejo pela volta da escravidão. Este é o momento, por exemplo, do surgimento das Jim Crow Laws, da Ku Klux Klan e dos linchamentos organizados.

O vídeo pontua que existem dois grandes momentos de construção de monumentos públicos confederados: o primeiro é o período de pós-reconstrução; o segundo ocorre entre as décadas de 1950 e 1960, e está ligado tanto ao centenário da derrota do Sul quanto ao surgimento do movimento pelos direitos civis. Fica inegável, portanto, a relação entre estes memoriais e o avanço de uma agenda racista, segregacionista e escravagista.

Why those Confederate soldier statues look a lot like their Union counterparts
Many monuments in the South were made in the North — by the same companies, and with the same molds, as those sold to Northern towns.

Ao longo da exposição, chamou-me a atenção o que poderia ser visto como um contra-argumento curiosíssimo aos que defendem a manutenção destas estátuas como “arte”: a historiadora da arte Sarah Beetham—citada por artigo publicado no Washington Post em 2107—notou que, ao final do século XIX, muitos dos monumentos foram vendidos por companhias da Nova Inglaterra; destarte, estátuas existentes no norte e no sul dos Estados Unidos—endossando narrativas opostas sobre a Guerra de Secessão—eram idênticas.

Embora a descoberta pareça não receber ênfase na discussão que vem se desenrolando acerca dessas homenagens públicas, a reprodução técnica em massa, e a venda de um mesmo molde para a representação de versões refratárias dum evento histórico parecem-me enfraquecer o caráter artístico de ao menos algumas destas estátuas. Manifestantes estratégicos talvez devessem voltar a mão contra estes marmóreos gêmeos de estátuas de soldados da União.