Música ao vivo, essa morta-viva
A alteração do enquadramento de minha rua no plano diretor de minha mal-gerenciada cidade (em si, nada recente) vem rendendo seus importunos frutos: antes residencial, agora mista, vê-se tomada por prédios, reformas e negócios. O empreendimento altinossante que me inspira a escrever esta nota—a musa que, a ser o Fogo do Espírito, preferiu fazer-se mosquito e zumbir-me ao pé do ouvido—é um food park, construído de modo semiaberto, mas agraciando quem deseja dormir em seus lares com música ao vivo, aproximadamente das nove às onze da noite.
Interessante essa denominação—música ao vivo. Toda música autêntica, feita por seres humanos e para seres humanos, é executada ao vivo em algum momento. Entretanto, parte da música contemporânea, nascida em estúdio ou diante duma platéia, torna-se gravação, e, se antes dormia nos discos, hoje, sofre de insônia em plataformas digitais. A gravação de música, ou, mais propriamente, a indústria fonográfica, transforma a noção acadêmica dum cânone—um conjunto de obras que merecem preservação, filologia, história e crítica—numa lista de músicos com direito divino a serem considerados artistas e a viverem disso, às vezes, luxuosamente; tais divindades executam suas canções originais em concertos ou programas de televisão. Não é a eles ou à sua música que se refere o termo música ao vivo; esta é executada em restaurantes, churrascarias e shopping centers por músicos que, mesmo que não se o diga, mesmo que injustamente, são considerados de segunda categoria.
É triste o músico ao vivo: executa obras alheias e obrigatoriamente conhecidas do público, num ambiente barulhento onde se bebe muito e se fala alto, onde seu trabalho é ruído de fundo. Ai dele se inovar: poderá, talvez, alterar harmonias ou variar uma frase, mas está preso a pessoas que nem o escutam, nem aceitam que se desvie de seus gostos. Não admira ser considerado, mesmo que não se o diga, mesmo que injustamente, de segunda categoria: não tem os direitos confiados aos verdadeiros artistas—os que gravam e se apresentam em concertos—; não pode ser original numa arte original, chegando ao ponto de se ver cantando Parabéns a você pralgum encabulado; não deve ser plenamente ouvido, tampouco tem direito ao silêncio. Para exercer o metiê, depende de bicos que fazem dele coadjuvante da platéia.
A verdadeira música se faz ao vivo: é um arte processual, um evento; o verdadeiro músico (o que sente sê-lo por seu conhecimento e técnica) é aquele que a executa (que deseja e sente ter direto a executá-la) diante duma platéia interessada, em proximidade com ela. Assim foi durante séculos. Hoje, porém, os verdadeiros músicos foram reduzidos a acessórios de bebedeira, juntando trocados perante indiferentes, e desejando a chance de se tornarem recording artists; estes, por sua vez, gravam de forma parcelada em estúdios e se estafam em concertos, vendidos a uma indústria cultural ansiosíssima por plagiar suas peças—às quais, muita vez, mutilara, a isso chamando produção—por meio de uma inteligência artificial que apodrece e destrói tudo o que toca. Durma-se com esse barulho.