Nota sobre o futuro do pretérito da arte

Nota sobre o futuro do pretérito da arte
Photo by Kevin Andre / Unsplash

A revista eletrônica O grito publicou, no dia 2 de abril do corrente, reportagem sobre a onda de imagens produzidas por inteligência artificial imitando o estilo de um famoso estúdio de animação japonês. A autora, Isabela Ferro, cita o depoimento da quadrinista Helô D’Ângelo:

Eu acredito que tudo isso é um grande projeto capitalista, neoliberal mesmo, de afastar as pessoas das artes, porque só a cultura realmente faz com que a gente questione a realidade que a gente está vivendo.

O que resta da arte quando o processo é apagado? Studio Ghibli, IA e o esvaziamento simbólico da criação artística - Revista O Grito! — Jornalismo cultural que fala de tudo
“Estou completamente enojado. Sinto fortemente que isso é um insulto à própria vida.” A declaração de Hayao Miyazaki, cofundador do Studio Ghibli, foi dada em

A crença no poder redentor ou libertador da reflexão causada pela arte é um dos tropos da estética contemporânea; pairam no ar crenças sobre projetos neoliberais para a arte, o mundo, o trabalho, etc., e sobre o papel da IA nisso tudo. D’Ângelo canaliza algumas destas crenças, e é a elas que gostaria de comentar nesta nota não muito entusiasmada.

Em primeiro lugar, não comungo das visões mais fortes da arte como salvadora, redentora, libertadora ou particularmente esclarecedora. Arte pode ser muitas coisas, e apenas uma parte das produções artísticas veio à luz com base na concepção do artista como sujeito consciente, que leva a termo uma visão de mundo própria e desafiadora; mesmo quando busca romper barreiras e atuar contra as injustiças, a arte, não raro, reproduz e difunde visões existentes mais do que as cria. A arte consumida pela esquerda brasileira, por exemplo, repete muitos dos mesmos chavões vistos em memes e postagens de redes digitais. Isso não é necessariamente mau ou empobrecedor; é nesse papel de registro ideológico que a arte encontra seu valor sócio-histórico: compreender como pensavam gerações pretéritas passa por reconstruir, através de sua arte, os conceitos e preconceitos que expressou.

Em segundo lugar, a arte em seu sentido mais intelectualizado e consciente, para causar qualquer tipo de reflexão, necessita de apoio institucional: a escola, a universidade, mesmo o mercado editorial, dentre outros agentes, contribuem para a curadoria da alta cultura, e fornecessem (no mais das vezes, mal e porcamente) os instrumentos para sua mais elevada apreciação. Na reportagem supracitada, outra quadrinista, Ing Lee, afirma que as pessoas aderiram à onda de produzir imagens digitalmente plagiadas do Estúdio Ghibli por não compreenderem os filmes. O cinema é distribuído à larga; o letramento cinematográfico, que seja de meu conhecimento, não existe na escola, que mal dá conta de fazer seus estudantes prestarem atenção na literatura.

Se há um projeto neoliberal neodeliberado para destruir o potencial crítico da arte, afeta antes o letramento que a arte em si. A arte e o pensamento seguem censuráveis e censurados, mas é necessário redimensionar nossa compreensão do que é e como funciona a censura num mundo onde produtores privados de tecnologia ditam as vidas de sujeitos e o funcionamento de governos.

Em primeiro lugar, como vai acima, a censura não é mais exclusivamente estatal, tampouco explícita: cada vez mais, é um fenômeno de instrumentos e rotas; cada vez menos, de proibições legais. Os livros, filmes e discos estão cada vez mais presentes na rede mundial de computadores, e tal fato é estropiadamente expresso pelo chavão de que a internet aumentou o acesso ao conhecimento. Ora, é mesmo possível afirmar isso num mundo onde, sabidamente, as redes digitais que distribuem informação são responsáveis pela proliferação de discurso de ódio, onde as gerações mais jovens estão se tornando mais preconceituosas por exposição a este discurso, onde os movimentos antivacina restauram doenças já controladas e praticamente erradicadas?

A internet teve impacto variado em nossa relação com conteúdo, informação e conhecimento: alterou seus meios de produção, armazenamento e distribuição; gerou mecanismos de ordenamento e direcionamento de dados altamente enviesados pelos interesses privados que os criaram (os infames algoritmos); aumentou imensamente o ruído que separa o usuário médio de conhecimento verdadeiramente complexo e especializado. O que a internet não fez—tampouco faria, é tarefa para a escola—foi prover ao usuário ferramentas conceptuais e cognitivas para navegar conteúdos e buscar conscientemente informações (ou seja, letramento midiático e digital). A internet aumentou o acesso passivo ao conhecimento, ao armazená-lo na rede mundial de computadores, mas, quando muito, reduziu o acesso ativo, i.e. a capacidade de o usuário buscar autonomamente aquilo que deseja. Sem acesso ativo, muitas informações valiosas permanecem à míngua, longe do grande público, e é assim—através da ilusão de que acesso significa tão somente acesso passivo—que as grandes corporações censuram. Zero canetadas, zero leis, zero atos administrativos.

O corolário desta descrição de censura é que, à alta cultura, será permitida existência, mas não acesso—seja imediato, através de contato simples, ágil e direto à obra, seja mediato, através de ferramentas de apreciação crítica. A alta cultura será, sim, oferecida, mas ou de um modo laborioso, exigindo esforço e busca conscientes do indivíduo por produções não-massificadas, ou com inúmeros entraves psicológicos prévios: a mencionada falta de instrumentalização, preconceitos sobre ser algo chato ou tedioso, construção prévia de interesses exclusivamente massificados, etc. Queimar livros, discos e filmes, estabelecer departamentos estatais de censura é menos eficiente do que simplesmente construir rotas de acesso que os deixem morrer à míngua, esquecidos e invisíveis. A censura está mais viva que nunca, prosperando na timidez, no recato, na modéstia.

Não afirmo que tal projeto haja sido conscientemente perpetrado; faltam-me dados. Afirmo, isso sim, que, planejado ou não, foi o que aconteceu. O capitalismo não vê a arte como revolucionária ou perigosa, pois foi muito bem-sucedido em torná-la vastamente inócua. Assim, custa-me acreditar que a inteligência artificial faria parte de um projeto consciente para destruir o que já foi, funcionalmente, muito bem destruído. Deixe que digam, que pensem, que falem, como diz a canção. Ninguém ouvirá.

O projeto da inteligência artificial para as artes é mais sombrio do que atacá-las. De um modo geral, observamos uma destruição em larga escala dos empregos que exigem preparo técnico médio ou superior; a destruição digital de postos de trabalho não se iniciou pelos trabalhos braçais, que necessitam da robótica, mas dos intelectuais. A arte gerada por inteligência artificial corta a necessidade de se contratar artistas, de negociar prazos, de lidar com idiossincrasias políticas de freelancers; mesmo as formas mais poderosamente ricas da cultura de massa—o grande cinema hollywoodiano e a música pop—, pela enorme quantidade de pessoas que empregam para gerarem suas produções, comporta inúmeros gripos e interesses que se confronam em seu bojo, e ainda conseguem oferecer produtos genuínos, nos quais uma visão de mundo contra-hegemônica pode ser vista. O artista humano ainda pode ser uma ativista: Sinéad O’Connor, tida por “difícil”, rasgando a foto do Papa em público num sábado a noite, em horário nobre, Roger Waters falando contra as novas formas de fascismo e defendendo o povo palestino.

A arte gerada digitalmente pode se aproveitar do trabalho de semelhantes artistas sem precisar deles: obsoleta não a arte, mas o artista. A arte sem artistas se torna, finalmente, um produto inteiramente massificado, um bem de consumo absolutamente dócil aos desejos de lucro. Que deixe de ser revolucionária é apenas subproduto, pois até a revolução, com a devida estratégia de marquetim, pode ser massificada e rentável.