7 min read

Seria o distanciamento social a vacina contra o distanciamento digital?

Seria o distanciamento social a vacina contra o distanciamento digital?

O Brasil está paulatinamente entrando em quarentena; a despeito da descrença programada do mandatário supremo—cada vez mais decorativo face à sua patente incompetência em lidar com a crise sanitária mundial—, instigados por medidas saudáveis dos governos estaduais, brasileiras e brasileiros começam a reforçar o coro de que é necessário ficar em casa e evitar contato social. Ao nos vermos forçados a abandonar o trabalho e a produção, ao nos vermos distanciados de nossos vizinhos, somos confrontados conosco mesmos—como sociedade, mas também como indivíduos. Este é um período de muito sofrimento, e, como tal, é um período de imenso aprendizado.

Os aprendizados sobre o fracasso do capitalismo me parecem claros (ao menos, para os setores mais ideologicamente à esquerda); interessa-me, aqui, nosso aprendizado individual. Curioso perceber como a romantização do isolamento—presente em memes sobre leitores, em piadinhas que naturalizam desrespeito básico como não responder mensagens e faltar a compromissos, no vangloriar-se em não gostar de gente e em detestar ligações telefônicas—parece haver desaparecido nos últimos dias, sendo substituída por memes sobre fazer coisas toscas logo nos primeiros dias de distanciamento social—um indicativo jocoso de se estar “perdendo a cabeça”.

Gostemos ou não, não somos seres eremitas; somos animais sociais, e precisamos de contato humano—físico e verbal. A solidão que vem sendo romantizada—inclusive por editoras, na tentativa de monetizar memes—é, muitas vezes, uma forma de mágoa: o orgulho de permanecer só (lendo, jogando, maratonando séries) esconde as mágoas profundas oriundas da incapacidade em se estabelecer vínculos, e mantê-los, das dúvidas e incertezas quanto aos sentimentos construídos e expressos, especialmente por meios digitais.

Em nossas relações digitais, venho percebendo muito isso: parecemos haver desaprendindo a estabelecer conexões; estamos esquecendo como demonstrar afeto, interesse, e como manter pessoas em nossas vidas. A praticidade do celular, ao mesmo tempo que nos sobrecarrega de “contatos” (há uma certa ironia no termo), também nos permite silenciá-los todos, ignorá-los quando convém ou a nosso bel prazer. Rejeitamos e somos rejeitados massivamente, todos os dias, de um modo impensável e impossível antes da era digital. Nada mais natural que confundirmos seres humanos—complexos microcosmos de crenças e emoções, nem sempre inteiramente coerentes, oriundos de uma trajetória socialmente determinada e, mesmo assim, única—com estímulos de um aparelho; nada mais natural que inferirmos—a partir daquela mensagem visualizada e não respondida, da mensagem sem resposta, da resposta fria e perfunctória—uma ausência de interesse, que nos faz julgar o outro a partir de nossas inseguranças e incertezas, não a partir de sua trajetória pessoal de sofrimento (que desconhecemos e raramente conseguimos inferir); que perdermos, em meio a tantas miúdas mágoas, qualquer traço de segurança emocional, ou seja, da sensação de amarmos e nos sentirmos amados por alguém que está junto a nós de alguma maneira, que retornará após se ausentar.

Quando você acorda e tem que lidar com gente tudo de novo. Note-se o nick do perfil creditado pelo meme: @lonerlifestyle (estilo de vida solitário).
Amigo: Desculpa cancelar nossos planos; espero que você não esteja chateado.

O distanciamento social que este período nos impõe como medida urgente e imediata de sobrevivência, para além da dor, traz a oportunidade de repensarmos algumas coisas:

A solidão: Apesar dos memes glorificando as fobias sociais, o que venho observando é que as pessoas realmente detestam ficar sós. Precisamos de gente em volta, ou, no mínimo, do constante barulho de televisores e músicas (reparo nisso porque, pessoalmente, detesto televisores ligados em consultórios ou na frente de esteiras, e, por mim, faria exercícios e mesmo tomaria transporte sem o rádio ligado). Detestamos nossa própria companhia. De que temos tanto medo ao sermos forçados a ficarmos a sós? O que tememos encontrar em meio a ela? Podemos estar sendo convidados a ressignificá-la. Em inglês, existe uma diferença entre loneliness e solitude: entre o sentir-se só como uma dor, contra nossa vontade, e o estar só de modo saudável, como algo a ser desfrutado. Se nossa solidão é loneliness, o que nos falta para fruir dela como solitude?

Felicidade é uma xícara de café e um bom livro. Os memes sobre o leitor oscilam entre a prazer em se estar só (como parece ser aqui o caso) e o isolamento como fobia social.

Nosso uso de ferramentas digitais: Ao invés de deixar mensagens sem responder, por que não finalizar conversas? Por que não selecionar melhor quais conversas iniciar, para que não sejam largadas a meio. O desmazelo interacional que cultivamos como adorável traço de personalidade volta-se contra nós: ao naturalizar a preponderância da praticidade e da fobia sobre o respeito interpessoal, a romantização do desleixo comunicacional contribui para nossa própria ausência de segurança emocional.

View this post on Instagram

If you need an encouraging post I would suggest you keep scrolling, haha. I find myself in a deeply angry and sad state tonight. Positive, peppy posts in the face of all that’s going on make me irate. I want to turn over my coffee table at “it’s okay! We’ll get through this! Keep working out and staying healthy!!” posts, and at the same time the constant barrage of negative news is suffocating. — I’m taking a moment to be honest with you - and myself - and confess how afraid I am. My anxious mind was not built to handle situations like this. I know so many of us are in this same mindset and need the happy content on social media to both distract and combat the bad. But I want to tell you it’s okay to fall apart and feel your sadness in its entirety. Do it in my comments or my messages if you have nowhere else that feels appropriate, I won’t judge you. — This cartoon simplifies a lot of the things that are whirling around my head, but it’s part of the equation nonetheless. Am I being dramatic? Probably. But I need to be for a little bit in order to move forward. *takes deep breath* I fear for my family. I fear for my husband who works in a doctor’s office. I fear for my friends. I fear for my community. I fear for myself. I want to cry and scream and hit things because so much is unknown and there is so much suffering and so little compassion. I hate that I need to go to work but I need the money so badly that I’m also grateful. I hate that people are dying but others are so petulant and selfish that they continue with their unsafe behavior. I hate the incompetence our leadership has shown from a national to a local level. I hate it. I hate it. — I’m not criticizing you or anyone who is trying to stay positive right now. We have to in some capacity if we’re ever going to get through this! I just needed a moment to be shitty. And I feel a lot better now that I have and I can focus on what’s next. . . If you like what I do please consider supporting my work and becoming a patron. Link to my Patreon is in my bio 💕 #personal #coronavirus #covid_19 #socialdistancing #tucsonartist #digitalart #digitalillustration #ipadart #ipaddrawing #procreateart

A post shared by Alyssa Robinson (@arobinsonart) on

“Falando francamente, estou muito assustada e triste.” “Meu celular é minha única distração e também uma fonte gigantesca de medo e raiva.” “Queria tocar meu rosto!!” “Odeio telefonemas e chamadas de vídeo, mas queria desesperadamente ter meus amigos por perto.” “Sorte ainda estar trabalhando… Mas tenho medo de adoecer, ou de deixar alguém doente.”

Nosso rechaço a formas respeitosas de contato: A tecnologia de comunicação à distância dominante até os anos 1990 e 2000—o telefone discado—nem sempre permitiu a identificação de quem telefonava; atendíamos sem saber a quem, e tínhamos de conversar com a pessoa. Havia começo, meio e fim para a conversa. O estereótipo do adolescente desse período é o da pessoa que não sai do telefone, passando horas a falar com uma única pessoa (as chamadas em grupo se tornaram possíveis a partir de algum momento; eu mesmo nunca as usei). Seguramente, hoje em dia não parecer fazer qualquer sentido não saber quem está entrando em contato; na era das mensagens rápidas, parece grosseiro simplesmente telefonar sem saber se a pessoa pode atender; mesmo assim, o que estamos rejeitando ao rejeitar ligações telefônicas ou chamadas de vídeo pode ser mais que o inconveniente de ser pego num mau momento ou de cara amassada e com os cabelos entrópicos; talvez o que rejeitemos seja justamente o “incômodo” de dar atenção individualizada a uma única pessoa, o sermos obrigados a falar com um e apenas um ser humano, sem nos distrairmos (muito), sem iniciar novas conversas com terceiros, sem podermos largar a pessoa falando para fazer qualquer outra coisa. Sem perceber, mais que o incômodo, rejeitamos a polidez, o respeito ao outro e, com eles, a construção ou manutenção de vínculos que geram maior segurança emocional.

Portanto, neste período de isolamento forçado, sugiro o duplo exercício de, por um lado, aceitarmos nossa solidão e o processo de auto-aprendizado que nos oferece; por outro, ficarmos atentos a nossos padrões interacionais digitais, de modo a torná-los mais significativos, e a evitarmos as armadilhas emocionais da praticidade em lidar com “contatos”. Retomar práticas interativas como o uso de telefonemas e vídeo-chamadas, reaprender a agendar uma ligação (há imenso ganho emocional em se dizer “ligarei para você a tal hora” e, de fato, fazê-lo), darmos atenção indivisa a uma pessoa só, podem ser modos importantes de nos fortalecermos emocionalmente neste período, e de começarmos a questionar o que foi feito de nossas relações sociais a partir do momento que em a fartura e a praticidade digitais substituíram o contato pessoal. No isolamento, no auto-aprendizado do isolamento, talvez reaprendamos a sermos seres amorosamente sociais.