Simple Past versus Present Perfect & Bolsonaro versus Brasil: uma lição de gramática

Simple Past versus Present Perfect & Bolsonaro versus Brasil: uma lição de gramática

O Present Perfect é a grande dor de cabeça de professores, aprendizes e tradutores. Os primeiros penam por explicá-lo, os segundos por aprendê-lo e os últimos (especialmente os iniciantes) por encontrar seu escorregadio equivalente lusófono.

Gostaria, mais uma vez, de aproveitar uma manchete contemporânea para explicar não só a diferença do Present Perfect para o Simple Present, mas principalmente por que motivo nem sempre a percebemos claramente, e porque exige cuidado ao se fazer escolhas de tradução.

Nosso exemplo é o seguinte:

While the novel coronavirus spreads in Brazil, President Jair Bolsonaro has demonstrated an alarming inability to govern the country, undermining the pandemic and efforts to protect and save lives. And as a result of his irresponsible and divisive behavior, he has thrown Brazil into a deep crisis. He must be removed from office.
(Rosana Pinheiro-Machado. Bolsonaro is endangering Brazil. He must be impeached. Washington Post, 29/mar/2020.)

Com o avanço do novo coronavírus no Brasil, o presidente Jair Bolsonaro tem demonstrado uma incapacidade alarmante de governar o país, minorando a pandemia e os esforços para proteger e salvar vidas. Como resultado de seu comportamento sedicioso e irresponsável, mergulhou o Brasil numa profunda crise. Deve ser afastado do cargo.

Opinion | Bolsonaro is endangering Brazil. He must be impeached.
The spread of the coronavirus could collapse the public health system in Brazil.

O excerto contém duas instâncias de uso de Present Perfect; a tradução opta por dois tempos verbas distintos para traduzir cada uma: tem demonstrado (perífrase verbal formalmente idêntica ao Present Perfect, mas com sentido distinto, denotando ação iniciada no passado e que perdura até o momento presente) e mergulhou (pretérito perfeito, denotando ação pontual finalizada no passado). Por que duas formas distintas para a mesma estrutura verbal?

Para compreender, reflitamos um pouco sobre os tempos verbais do inglês em sua relação aos nossos: Os tempos verbais expressos morfológica ou perifrasticamente no inglês apresentam certa compatibilidade com os do português:

  • No presente, o português apresenta três formas de expressão de ação continuada. O presente contínuo com auxiliar ser (que expressa continuidade em meio ao presente) e duas formas perifrásticas com auxiliares ter e vir (ambas representando ações que se iniciam em um ponto considerado pretérito, mas que se estendem até o presente). Como já pontuado, a forma ter (no pres. ind.) + particípio passado é estruturalmente idêntica ao Present Perfect.
  • O Simple Past corresponderia, em português, a nossos pretéritos perfeito e imperfeito—usados, respectivamente, para se descrever ações pontuais no passado e para descrição de estados/rotinas no passado.
  • O Past Perfect corresponde ao pretérito-mais-que-perfeito, que expressa ações anteriores a um determinado ponto no passado.

Antes de podermos analisar o exemplo acima, o quadro apresentado nos ajudará a compreender algumas coisas. Primeiramente, note-se que o inglês combina três palavras em sua descrição dos tempos verbais; estas palavras determinam estrutura, não necessariamente valor:

  1. Simple: tempos marcados morfologicamente (à exceção do Simple Future, pois o futuro, em inglês é expresso através do sistema modal).
  2. Perfect: perífrases verbais compostas por have + particípio passado.
  3. Continuous: perífrases verbais compostas por be + particípio presente.

Assim, uma primeira confusão a que se está sujeito é supor que, na expressão Present Perfect, present diz respeito ao tempo presente; isso é falso: diz respeito somente à forma presente adotada pelo auxiliar. O Present Perfect é uma forma de expressão do pretérito.

Outra confusão a que isso pode levar é supormos algum tipo de paralelismo semântico entre os tempos verbais que levam perfect no nome; o paralelismo, também aqui, é apenas formal. O Past e o Future Perfect (I will have done) têm funcionamentos completamente distintos do Present Pefect, compartilhando com este apenas uma semelhança estrutural. Isso quer dizer que have, como auxiliar, tem dois usos distintos:

  1. como marca de pretérito no caso do Past e do Future Perfect e de perífrases modais (may have done, must have done, etc.);
  2. como marca de aspecto no Present Perfect (sobre isso, ver mais adiante).

A segunda coisa que deveria nos chamar a atenção no quadro comparativo é que os pretéritos perfeito e imperfeito são expressos pelo Simple Past; o Present Perfect, liga-se somente ao primeiro, não expressando a habitualidade ou reiteração presentes no pretérito imperfeito. O inglês, quando deseja explicitar esta reiteração, utiliza-se de outras formas:

She is gone, but she used to be mine.
Ela se foi, mas costumava ser minha.
(Sara Bareilles, She Used to Be Mine)
He was a husband who drove his wife home drunk from the parties, and in the car he would lean her head gently against the side door window, and in the bathroom he would hold her hair back […]
Era um esposo que levava a esposa bêbada para casa das festas, e no carro ajeitava com cuidado a cabeça dela na janela lateral, e no banheiro segurava o cabelo dela…
(Regina Spektor, Buildings)

Assim, desde o ponto de vista das relações temporais expressas por sua equivalência com o pretérito perfeito, o Simple Past e o Present Perfect não diferem. São idênticos. A dificuldade em se compreender a real diferença entre ambos está em procurarmos no lugar errado: esperamos que esteja na relação temporal que estabelecem, e aí nos perdemos, tentando encontrar razões de uso necessário de um ou de outro, quando, na verdade, são temporalmente intercambiáveis.

Mas o que muda, então? Por que, no exemplo acima, temos duas vezes o Present Perfect? Mais importante ainda: porque não foram as duas instâncias traduzidas pelo pretérito perfeito?

Como adiantei acima, a diferença entre Present Perfect e Simple Past está no aspecto: o aspecto é uma forma de inserção gramatical do ponto de vista do falante; como tal, é pessoal e subjetivo.

A diferença em se usar um tempo ou outro está relacionada ao fato de que, ao usarmos o Present Perfect, convidamos o leitor ou ouvinte a fazer uma inferência sobre a relevância da ação descrita para uma situação em curso. Se esta inferência será feita ou não, se será clara ou não, cabe ao leitor ou ouvinte, mas, ao usá-lo, o falante fez o convite.

No caso em questão, as escolhas da autora deixam isso claro: contextual e sintaticamente falando, seria perfeitamente possível empregar o Simple Past  (demonstrated, threw), o Present Perfect Continuous (has been desmonstrating, has been throwing) ou mesmo talvez o Simple Present (demonstrates, throws); os dois verbos poderiam também, cada um, estar num tempo verbal distinto. A opção pelo Present Perfect, porém, convida o leitor a uma maior participação, solicitando-lhe alguma cumplicidade, e o compartilhamento de um ponto de vista comum. Por mais óbvia que pareça a situação descrita, o valor aspectual convida o leitor a completar o quebra-cabeças.

É precisamente este elemento subjetivo—para o qual não existe marcação morfológica no português—que permite certa frouxidão (ou convida a certa cautela) nas traduções do Present Perfect. As demonstrações de incompetência não cessaram; pelo contrário, apenas se agravam. Assim, traduzir has demonstrated por demonstrou, embora não esteja equivocado, pode soar como se o presidente houvesse parado de dar mostras de despreparo, o que está longe de ser verdade; assim, o uso de um tempo contínuo seria uma opção ideológica, uma explicitação do que o texto deixa inferir. O tradutor poderia, contudo, evitar a pecha de fazer decalque, substituindo tem demonstrado por vem demonstrando—ambas, como vimos, têm o mesmo valor.

No caso do segundo uso, has thrown, a tradução pelo pretérito perfeito também é ideologicamente motivada: seguramente, em nome da uniformidade (e com base nos fatos), poderíamos traduzir vem mergulhando, mas isso poderia dar a impressão de que ainda não estamos completamente no abismo: a escolha do pretérito perfeito implica que já estamos, e portanto parece uma opção ideológica mais condizente com o tom do artigo.

Como se vê, a seleção de tempos verbais e de sua tradução, como tudo mais em se tratando de representações lingüísticas, é ideologicamente motivada. Nenhum tempo verbal enfatiza isso com tanta força quanto o Present Perfect—justamente um tempo que insere o ponto de vista do falante na estrutura, e convida a inferências. A tradução apresentada do trecho não é neutra, procurando não apenas alinhar-se às opções ideológicas da autora, mas enfatizá-las, oscilando entre explicitar ora a inferência sobre a relevância presente, ora a marcação temporal pretérita do Present Perfect. Em ambos os casos, a escolha implica perdas, mas isso é algo inevitável em se tratando seja de traduzir tempos verbais para os quais não há equivalente, seja de eleger um desqualificado.