Seria o distanciamento social a vacina contra o distanciamento digital?
O Brasil está paulatinamente entrando em quarentena; a despeito da descrença programada do mandatário supremo—cada vez mais decorativo face à sua patente incompetência em lidar com a crise sanitária mundial—, instigados por medidas saudáveis dos governos estaduais, brasileiras e brasileiros começam a reforçar o coro de que é necessário ficar em casa e evitar contato social. Ao nos vermos forçados a abandonar o trabalho e a produção, ao nos vermos distanciados de nossos vizinhos, somos confrontados conosco mesmos—como sociedade, mas também como indivíduos. Este é um período de muito sofrimento, e, como tal, é um período de imenso aprendizado.
Os aprendizados sobre o fracasso do capitalismo me parecem claros (ao menos, para os setores mais ideologicamente à esquerda); interessa-me, aqui, nosso aprendizado individual. Curioso perceber como a romantização do isolamento—presente em memes sobre leitores, em piadinhas que naturalizam desrespeito básico como não responder mensagens e faltar a compromissos, no vangloriar-se em não gostar de gente e em detestar ligações telefônicas—parece haver desaparecido nos últimos dias, sendo substituída por memes sobre fazer coisas toscas logo nos primeiros dias de distanciamento social—um indicativo jocoso de se estar “perdendo a cabeça”.
Gostemos ou não, não somos seres eremitas; somos animais sociais, e precisamos de contato humano—físico e verbal. A solidão que vem sendo romantizada—inclusive por editoras, na tentativa de monetizar memes—é, muitas vezes, uma forma de mágoa: o orgulho de permanecer só (lendo, jogando, maratonando séries) esconde as mágoas profundas oriundas da incapacidade em se estabelecer vínculos, e mantê-los, das dúvidas e incertezas quanto aos sentimentos construídos e expressos, especialmente por meios digitais.
Em nossas relações digitais, venho percebendo muito isso: parecemos haver desaprendindo a estabelecer conexões; estamos esquecendo como demonstrar afeto, interesse, e como manter pessoas em nossas vidas. A praticidade do celular, ao mesmo tempo que nos sobrecarrega de “contatos” (há uma certa ironia no termo), também nos permite silenciá-los todos, ignorá-los quando convém ou a nosso bel prazer. Rejeitamos e somos rejeitados massivamente, todos os dias, de um modo impensável e impossível antes da era digital. Nada mais natural que confundirmos seres humanos—complexos microcosmos de crenças e emoções, nem sempre inteiramente coerentes, oriundos de uma trajetória socialmente determinada e, mesmo assim, única—com estímulos de um aparelho; nada mais natural que inferirmos—a partir daquela mensagem visualizada e não respondida, da mensagem sem resposta, da resposta fria e perfunctória—uma ausência de interesse, que nos faz julgar o outro a partir de nossas inseguranças e incertezas, não a partir de sua trajetória pessoal de sofrimento (que desconhecemos e raramente conseguimos inferir); que perdermos, em meio a tantas miúdas mágoas, qualquer traço de segurança emocional, ou seja, da sensação de amarmos e nos sentirmos amados por alguém que está junto a nós de alguma maneira, que retornará após se ausentar.
O distanciamento social que este período nos impõe como medida urgente e imediata de sobrevivência, para além da dor, traz a oportunidade de repensarmos algumas coisas:
A solidão: Apesar dos memes glorificando as fobias sociais, o que venho observando é que as pessoas realmente detestam ficar sós. Precisamos de gente em volta, ou, no mínimo, do constante barulho de televisores e músicas (reparo nisso porque, pessoalmente, detesto televisores ligados em consultórios ou na frente de esteiras, e, por mim, faria exercícios e mesmo tomaria transporte sem o rádio ligado). Detestamos nossa própria companhia. De que temos tanto medo ao sermos forçados a ficarmos a sós? O que tememos encontrar em meio a ela? Podemos estar sendo convidados a ressignificá-la. Em inglês, existe uma diferença entre loneliness e solitude: entre o sentir-se só como uma dor, contra nossa vontade, e o estar só de modo saudável, como algo a ser desfrutado. Se nossa solidão é loneliness, o que nos falta para fruir dela como solitude?
Nosso uso de ferramentas digitais: Ao invés de deixar mensagens sem responder, por que não finalizar conversas? Por que não selecionar melhor quais conversas iniciar, para que não sejam largadas a meio. O desmazelo interacional que cultivamos como adorável traço de personalidade volta-se contra nós: ao naturalizar a preponderância da praticidade e da fobia sobre o respeito interpessoal, a romantização do desleixo comunicacional contribui para nossa própria ausência de segurança emocional.
Nosso rechaço a formas respeitosas de contato: A tecnologia de comunicação à distância dominante até os anos 1990 e 2000—o telefone discado—nem sempre permitiu a identificação de quem telefonava; atendíamos sem saber a quem, e tínhamos de conversar com a pessoa. Havia começo, meio e fim para a conversa. O estereótipo do adolescente desse período é o da pessoa que não sai do telefone, passando horas a falar com uma única pessoa (as chamadas em grupo se tornaram possíveis a partir de algum momento; eu mesmo nunca as usei). Seguramente, hoje em dia não parecer fazer qualquer sentido não saber quem está entrando em contato; na era das mensagens rápidas, parece grosseiro simplesmente telefonar sem saber se a pessoa pode atender; mesmo assim, o que estamos rejeitando ao rejeitar ligações telefônicas ou chamadas de vídeo pode ser mais que o inconveniente de ser pego num mau momento ou de cara amassada e com os cabelos entrópicos; talvez o que rejeitemos seja justamente o “incômodo” de dar atenção individualizada a uma única pessoa, o sermos obrigados a falar com um e apenas um ser humano, sem nos distrairmos (muito), sem iniciar novas conversas com terceiros, sem podermos largar a pessoa falando para fazer qualquer outra coisa. Sem perceber, mais que o incômodo, rejeitamos a polidez, o respeito ao outro e, com eles, a construção ou manutenção de vínculos que geram maior segurança emocional.
Portanto, neste período de isolamento forçado, sugiro o duplo exercício de, por um lado, aceitarmos nossa solidão e o processo de auto-aprendizado que nos oferece; por outro, ficarmos atentos a nossos padrões interacionais digitais, de modo a torná-los mais significativos, e a evitarmos as armadilhas emocionais da praticidade em lidar com “contatos”. Retomar práticas interativas como o uso de telefonemas e vídeo-chamadas, reaprender a agendar uma ligação (há imenso ganho emocional em se dizer “ligarei para você a tal hora” e, de fato, fazê-lo), darmos atenção indivisa a uma pessoa só, podem ser modos importantes de nos fortalecermos emocionalmente neste período, e de começarmos a questionar o que foi feito de nossas relações sociais a partir do momento que em a fartura e a praticidade digitais substituíram o contato pessoal. No isolamento, no auto-aprendizado do isolamento, talvez reaprendamos a sermos seres amorosamente sociais.