Uma nota sobre transliteração e público leitor
Ano passado, quando minha mãe estava resfriada, presenteei-a com um best-seller japonês intitulado Vou te receitar um gato; hoje pela manhã, tinha-o às mãos e, logo na primeira página, deparo-me com o seguinte trecho:
“Quioto, distrito de Nakagyō, avenida Fuyachō, subir, avenida Rokkaku, virar a oeste, avenida Tomikōji, descer, avenida Takoyakushi, virar a leste.” (2024, p. 9; trad. Eunice Suenaga; aspas no original.)
Pode-se dizer que o trecho apresenta uma dificuldade irrelevante: expressões como subir, avenida, virar a oeste, e a menção, pouco adiante, ao GPS, deixarão claro que a personagem segue direções para encontrar um endereço. Os topônimos em japonês não interferem nessa compreensão elementar. Não obstante, ao me deparar com Nakagyō, pergunto-me: o que embasa a escolha deste estilo de transliteração? O público-alvo do texto foi levado em consideração, por tradutora ou editora?
Parece-me que não: a tradução é escorreita; a transliteração, feita de especialista para especialistas. Tomando ainda o primeiro topônimo como exemplo, Nakagyō será lido, por alguém com algum domínio do japonês, como Nakaguiô; minha mãe, suponho, se não pulou o termo na leitura, leu-o como Nacájio. Não conhece a função do mácron * (ver notas para termos destacados com ), e sabe que, em português, o g anteposto a i ou e (e o que seria um y senão um substituto do i) é lido como j. O sistema de transliteração escolhido é niponizante: busca reproduzir a pronúncia do texto-fonte em língua-meta, evitando os processos naturais de hiperbibasmo* e as substituições fonéticas oriundos da aclimatação*; tal sistema parece-me conflitar com o conhecimento do público-alvo médio.
Disse acima que a compreensão elementar não foi prejudicada; outro fator importante nessa sucessão de topônimos nipônicos seria justamente seu poder conotativo. Para um leitor japonês médio, o que significa deslocar-se pela avenida Rokkaku? Que conotações invoca? O que significa, num texto literário, algo acontecer no Plano-Piloto de Brasília, na Rua do Ouvidor do Rio de Janeiro, na Liberdade em São Paulo, na Palhoça em Santa Catarina? Associações socioeconômicas, populacionais, étnicas, culturais ou puramente estereotípicas podem impactar a apresentação inicial das personagens; neste caso, trata-se do endereço do consultório da médica cujo receituário felino é tema do romance; nossa protagonista está sendo apresentada através do trajeto que deve ser percorrido para lhe encontrar a recôndita clínica. Aqui, entretanto, não desejo obstar à escolha tradutória: não há notas de rodapé, não há explicação; quaisquer usos simbólicos da topografia são deixados de lado, e este sacrifício beneficia uma leitura mais imediata do trecho pedregoso por um público que está lendo para se distrair, não para aprender penosamente sobre língua e geografia. É escolha oposta à escolha sobre transliteração, e fez maior sentido, fazendo sacrifícios que considero razoáveis.
A transliteração pode ter grande impacto na legibilidade dum texto. Não só no sentido de permitir que seja decodificado—que se o leia em voz alta, por exemplo—, mas de angariar ou preterir fluência de leitura quando a sobrecarga de estrangeirismos é inevitável. Alguns textos, por sua natureza técnica, contarão com um leitor interessado e moroso, que sobe assoviando um morro em primeira marcha. Um texto sobre filosofia árabe ou literatura russa, escrito por e para especialistas, poderá contar com notas, e mesmo com uma tabela de equivalência que explique as escolhas de transliteração. Nestes casos, faria sentido que o leitor se interessasse ao menos um pouco pela língua do outro—que pode nem ser a língua-fonte do texto, mas de seu objeto—, e que buscasse alguma proximidade com ela, de modo a manipular termos russos, gregos, árabes, etc. sem intermédio de tradução. O texto em pauta se destina a um público mais amplo e mais leigo, entretanto transliterou para os iniciados.
Mesmo em textos altamente especializados, porém, é necessária cautela. Tempos atrás, tentei me aventurar pela tradução aristotélica de De anima. A tradutora, Maria Cecília Gomes dos Reis, é extremamente especialista em Aristóteles; nas primeiras linhas do prefácio, afirma que desejou “oferecer uma tradução que possa ser utilizada pelo estudante que não lê grego, sem nenhuma pretensão à erudição” (2006, p. 9). (Considerando minha derrota em ler a referida tradução, a escolha vocabular me pareceu feliz: será utilizada, não necessariamente lida.)
Assim, é sem nenhuma pretensão à erudição, que, ao lermos
É neste caso que a percepção seria verdadeira ou falsa. (2006, p. 111)
Deparamo-nos com uma nota, das poucas esparsas, que, como as poucas esparsas, diz algo como:
Lendo τóτε χαì ή α’ληθης χαì ή ψσευδής, na linha 15.
Versando sobre a lição grega* que escolheu para traduzir a sentença, e apresentando um texto grego salpicado de diacríticos* (dificílimos de identificar na letra miúda da edição, diga-se de passagem, e dos quais suprimi um por imperícia técnica), a tradutora dirige-se, em nota, aos pares, aos que detêm a competência de julgá-la por seu conhecimento de Aristóteles e de grego, e pouco diz ao estudante não-iniciado. Acrescente-se: não se trata, como hoje é moda, de edição bilíngüe. Um texto bilíngüe seria mais indicado, justamente como a nota da tradutora, para quem tem ou está adquirindo familiaridade direta com o grego. Pode não ser bem o caso do público-alvo expresso no prefácio.
Em conversa com um amigo que estuda Aristóteles, pontuou-me pertinentemente que o texto, talvez, destine-se a estudantes de filosofia das fases iniciais de um curso de graduação; neste caso, o grego das notas e seus diacríticos todos seriam pertinentes, pois a leitura se dá sob supervisão do professor, e é bom que o alunado já vá torcendo o pepino. Ainda assim, estudante, no prefácio, é termo amplo: qualquer um lendo Aristóteles está estudando Aristóteles; não é leitura puramente recreacional, ainda que o leitor seja (como sou) diletante. Se o texto se destina a público mais restrito, a editora deveria restringi-lo, vendendo o volume como livro-texto. Como no caso do romance japonês, a tradutora não é a única responsável: existe uma escolha editorial que ratifica a discrepância entre (não-)transliteração e público-alvo.
Ao traduzir, transliterar nos coloca no limite da tradutibilidade: transliteramos quando julgamos mais proveitoso que o leitor tenha contato direto com a língua-fonte através do texto-meta, ou quando tal contato é inevitável. A escolha dos métodos de transliteração, que não é de modo algum ciência com regras rígidas, deve, no mínimo, mediar entre nossa reputação perante os pares e as necessidades e interesses do público-alvo. Deixe-se o dificultoso ou o sacrificialmente difícil para quem o estuda, facilite-se para quem deseja o lazer.
Notas
diacríticos, mácron: sinais acrescentados às letras para aclarar a pronúncia; os nossos, que vão sumindo, um reforma ortográfica por vez, são o acento agudo, grave, circunflexo, til e cedilha. No trecho citado do romance, usa-se o mácron, que não indica sílaba tônica, mas alargamento da vogal.
lição: textos antigos podem sobreviver em mais de um manuscrito, ou em versões manuscritas e impressas, que freqüentemente apresentam divergências; dado um trecho específico que sobrevive com variantes em diversos manuscritos, cada uma dessas versões é uma lição. Um editor moderno, ao realizar um processo de colação (comparação) entre elas, deverá decidir-se por uma, ou seja, seguir uma lição.
hiperbibasmo, aclimatação: aclimatar, em Teoria da Tradução, é adaptar um termo estrangeiro à língua-alvo; no nosso caso, é o que chamaríamos de aportuguesar: deletar é a forma aclimatada/aportuguesada do verbo inglês delete. Parte das mudanças fonológicas desse processo consiste no deslocamento do acento tônico, chamado hiperbibasmo, que pode ser de dois tipos: (1) sístole, quando o acento recua para a sílaba anterior; (2) diástole quando avança para sílaba posterior. No exemplo dado (Nakagyō > Nakájio), ocorre sístole.