A tarefa do audiodescritor: entrevista com Carla Azevedo
O lingüista russo Roman Jakobson, em um ensaio já clássico sobre tradução, cunhou o termo tradução intersemiótica. Trata-se da tradução de um texto verbal a sistemas de signos não verbais.
O semioticista Umberto Eco, expandindo a definição de Jakobson para ubicar a tradução dentro de um conjunto mais amplo de práticas interpretativas, chamou este processo de interpretação inter-sistêmica com mutação de matéria.
Finalmente, Lawrence Venuti, apesar de não estar particularmente interessado em tipologias da tradução, sugeriu que também é possível fazer o caminho oposto ao preconizado por Jakobson, e interpretar verbalmente elementos não-verbais (o que, aliás, a tipologia semiótica de Eco já previa).
A audiodescrição (AD), enquanto prática tradutória, estaria encaixada neste tipo de processo, indo do não-verbal ao verbal. Assim sendo, conversamos com a audiodescritora Carla Azevedo, pioneira na área em Florianópolis, para que nos contasse um pouquinho de seu trabalho.
Fala um pouquinho, para quem não está familiarizado, como funciona o trabalho da ACIC, e do seu trabalho lá dentro.
O meu trabalho na ACIC iniciou aproximadamente em 2006; em maio, completo 12 anos atuando junto à pessoas com deficiência visual, enquanto psicóloga. Atuo principalmente com um público com perda da visão, como parte da equipe de profissionais da ACIC. É um trabalho bem diversificado e gratificante junto com assistente social, pedagogos, educadores físicos, dentro de um viés de fortalecimento de vínculo familiar como preconizado na política da assistência social.
Mas foi esse trabalho que levou você à audiodescrição, de alguma maneira?
De uma certa maneira, foi. De uns tempos para cá, começou a aparecer muito material audiovisual sobre a inclusão, documentários, etc. Sempre busquei estes conteúdos para trabalhar com os grupos de apoio, que são formados por pessoas que passaram por processo de perda visual, total ou parcial, e é super importante haver material que traga relatos de outras experiências, que possam encorajar e promover reflexões e trocas entre os participantes. Este tipo de material, salvo algumas exceções, nunca tem AD. A AD foi acontecendo de uma maneira muito natural nestes momentos. Eu explicava, de forma espontânea, o que acontecia na tela e ali foi surgindo, de alguma forma, uma identificação com essa atividade, e eu fui sendo pega por isso, principalmente ao perceber que havia um crescente interesse das pessoas que perdiam a visão por filmes, elas gostariam de voltar a assisti-los, de alguma forma.
E os primeiros trabalhos com AD, como audiodescritora mesmo, surgiram como?
Uma marco importante para mim foi o primeiro espetáculo da ACIC, chamado Os olhos da arte, em 2016. Neste ano, a ACIC começou a traçar estratégias para ser mais conhecida pela comunidade, visando a ampliação de recursos de investimento para manter seus serviços, mostrando a relevância do trabalho institucional para a sociedade. Uma dessas ações foi a criação de um espetáculo; a gente percebia muitos talentos—talentos que ficavam escondidos da sociedade e até mesmo das famílias. Então foi idealizado um show com música, dança, humor. Todos se engajaram, deram o melhor de si.
Havia, junto disso, a necessidade de quebrarmos a ideia errônea de que a pessoa cega não pode apreciar a arte, não participa da vida cultural. Era fundamental que este espetáculo fosse acessível! Fui convidada a fazer a AD deste espetáculo. E foi aí que eu comecei realmente a me preparar para este e os demais desafios que vinham pela frente.
Foi um momento de grande desafio de fato, erros, muitas tentativas, foi uma experiência completamente nova, tanto para mim, como para toda a equipe. Na época, participei de um curso preparatório fantástico com a audiodescritora Rosa Matsushita, de São Paulo, comecei meu processo profissionalizante.
Os grandes incentivos vinham da minha relação com as pessoas com deficiência visual da entidade, ouvia comentários encorajadores como: “Carla, você tem jeito para isso”, “eu gosto quando é a sua voz me falando o que tem no filme”, isso me enxia de ânimo e ajudava a vencer as inseguranças que logicamente surgem num trabalho tão novo.
Então, nesse espetáculo, todas as pessoas se apresentando no palco eram cegas?
A maioria de pessoas é cega ou com baixa visão, tanto dançando, quanto cantando, tocando instrumentos.
As pessoas geralmente não imaginam que pessoas com determinadas limitações consigam apreciar certas formas de expressão artística.
Exatamente. Então, o espetáculo serve para a gente repensar algumas coisas, rever preconceitos.
O conceito de audiodescrição ainda deve soar meio novo para muita gente. Como você definiria a audiodescrição?
A pessoa cega está como protagonista. O público aprecia e aplaude, mas não de forma caritativa, do tipo “vou aplaudir pra dar uma força”. Não, o que se deseja é que a plateia encontre um espetáculo com qualidade, preparado com o máximo de profissionalismo, que derrube barreiras, promovendo a quebra de paradigmas. Há uma necessidade bastante forte de espaços e oportunidades para que talentos de pessoas ainda “invisíveis” sejam reconhecidos.
A audiodescrição é um tipo de tradução, é transformar em palavras aquilo que é visual. Mas vai muito além de só descrever o que a gente vê: o trabalho do áudio-descritor começa bem antes de uma apresentação, de um filme ser exibido ou de uma exposição de arte. O trabalho requer pesquisa, produção de roteiro, preparação de locução em caso de eventos ao vivo, conversas com consultores, etc. Por exemplo, em uma peça teatral, é preciso estudar o momento de inserir as locuções: um excesso de intervenções da AD, por exemplo, pode interferir negativamente, caso se sobreponha a falas e sons importantes para a compreensão do enredo. A AD tem princípios que precisam ser respeitados.
É um recurso voltado principalmente ao público cego ou com baixa visão, mas já existe experiência da AD para pessoas com transtorno de déficit de atenção, pessoas com deficiência intelectual. A audiodescrição também pode ter um efeito bastante positivo nestes casos.
Você falou da preparação. Comente um pouquinho sobre como é que é essa apresentação, se quiser pode dar algum exemplo específico.
A minha experiência tem sido muito com a AD ao vivo, mas pode também ser gravada, editada junto com o áudio de um filme, como já disponíveis na TV aberta. Pode ser feita tanto para objetos estáticos como fotos e obras de arte, como para apresentações musicais, palestras e até eventos familiares como casamentos.
Em peças teatrais, por exemplo, aproximadamente um mês antes, já estou em contato com a equipe teatral, buscando materiais de roteiro, vídeos, ensaios. Busco entender, junto com diretores, produtores, atores, qual a estória dessa peça—porque é que aqueles elementos estão no palco, como foi a construção da peça, se é uma estória original, se teve alguma adaptação, qual foi a fonte de criação, de inspiração, e isso é fundamental para a gente entender.
Fiz a AD de um monólogo chamado A Última Dança, do dramaturgo César Baptista, baseado nos diários da filósofa francesa Simone Weil. Havia uma planta no fundo do palco durante toda a peça; eu sabia que, lá no início da peça, quando eu descrevi o cenário, era preciso dizer que aquela planta estava lá. Num primeiro olhar para o cenário, aquela planta parece bem insignificante, mas ela tem uma participação muito importante na cena final. E qual é o grande objetivo de todo este processo? Que a pessoa cega entenda a estória, compreenda os elementos que aparecem em cena, junto com todos os demais espectadores e consiga debater, conversar em igualdade sobre a peça com as outras pessoas que viram. Desfrute das emoções que esta peça desperta.
Então, mesmo quando é ao vivo, você gera um roteiro prévio.
É o que a gente chama de um pré-roteiro. Tem um fator bastante importante neste processo, o trabalho do audiodescritor não é um trabalho exclusivo dele. Ele precisa ter uma validação de um consultor, e esse consultor tem dois pré-requisitos: ele tem que ser uma pessoa com deficiência visual e tem que ter uma formação em AD.
A minha consultora, Michelle Belatto, revisa meu roteiro e devolve sugestões de melhorias. Por exemplo, quando descrevo um movimento corporal comparando com um abrir de asas. Ela colocou que esta comparação não deve ser colocada, pois o conceito de “asas”, para uma pessoa que nunca enxergou, por exemplo, pode ser bastante vago. Portanto, procuramos juntas criar a descrição do movimento. Assim como quando escrevo “Ela tira o cabelo do seu rosto”, “seu” nesta frase, não é indicado. São pequenos ajustes (às vezes, grandes ajustes!) que vão trazendo uma maior consistência para o roteiro, principalmente um roteiro que respeite a capacidade cognitiva do usuário da AD. A AD precisa respeitar a autonomia interpretativa do usuário, não fazer “explicações” desnecessárias, isso é muito importante o papel que o consultor tem neste processo.
Qual a sua percepção sobre o modo como as pessoas cegas ou com baixa visão se relacionam com a audiodescrição?
Em Florianópolis, estamos vivenciando um início, mas já existe a construção de um caminho que vem só crescendo. As pessoas com deficiência visual experimentam uma situação de exclusão muito forte no que se refere ao acesso à cultura, seja no cinema, no teatro, museus, etc.
Por conta disso, o público ainda está sendo formado. Há a necessidade de criação de estratégias para atração do público. Familiares ou amigos sempre foram as pessoas que acabaram fazendo o papel de descrever, ao seu modo, o mundo para a pessoa cega. Apesar da boa vontade, eles tentam dizer o que está acontecendo na tela, por exemplo, mas também estão envolvidos com a trama do filme, esquecem de falar, começam a rir e vão descrever o que está acontecendo depois que a cena já mudou. É uma situação que pode ser bem divertida, porém, não coloca os dois espectadores em igualdade de condições.
Hoje, essa relação com a audiodescrição está começando a crescer, já presencio pessoas cegas reivindicando a presença do recurso em alguns espaços. Em 2015, a Lei Brasileira da Inclusão trouxe com mais força as questões sobre a acessibilidade e estes debates estão acontecendo de maneira mais forte. A Lei Rouanet está exigindo acessibilidade. No eixo Rio-São Paulo, percebe-se uma formação maior de público, maior oferta do serviço, e sem dúvida é um caminho que estamos tentando construir por aqui também. É bastante importante uma maior aproximação dos gestores públicos, produtores culturais e usuários da acessibilidade para a construção de um novo cenário, pois são muitas as dúvidas presentes entre aqueles que produzem cultura, os que financiam, por conta dos custos dos recursos de acessibilidade, e a própria pessoa com deficiência, que ainda vem se formando como consumidor.
Aqui em Florianópolis, como as pessoas podem se informar, para saber se um evento tem audiodescrição?
Normalmente, os eventos com recursos de acessibilidade são divulgados pelos meios de comunicação, internet, TV, rádio, etc.
Alguns produtores procuram entidades especializadas como a ACIC para alcançar o público com deficiência. A partir daí, as pessoas vão disseminando a informação em suas redes sociais. Mas considero a procura destes muito baixa.
Falta um canal mais específico para a divulgação de eventos com acessibilidade na cidade. Isto seria bem importante, visando um alcance mais efetivo do público, mas principalmente, maior articulação dos promovedores de cultura e espaços representativos das pessoas com deficiência.
Para falar um pouquinho então da experiência das pessoas e com baixa visão quando elas de fato participam destes eventos: como é que você percebe a reação delas aos eventos que têm audiodescrição?
Essas primeiras experiências do público têm sido bem interessantes. Uma das coisas que eu faço logo em seguida ao espetáculo ou apresentação é conversar com o usuário. Pude ouvir frases como: “Nossa, eu agora assisti um espetáculo!”, “Agora entendi o que é que estava acontecendo, sem ter que ficar cutucando quem estava do lado para me explicar”, “entendi porque todo mundo está aplaudindo” (ou rindo, ou chorando), “Eu entendi, na hora que deu um problema no microfone”. Este é o empoderamento que a acessibilidade traz.
Eu tive a oportunidade de fazer roteiro e locução de um filme chamado A família Bélier, de Eric Lartigau, um filme que provoca diferentes emoções, tem humor, tem o momento comovente. Foi muito bacana perceber na plateia, composta por pessoas cegas e videntes, que todos puderam reagir a estes momentos em conjunto, cada um de sua forma, porém, sem que as pessoas que não viam a tela perdessem o tempo do riso e da comoção, acompanhando o desdobramento do filme, as mudanças de cena, algumas informações de cenário, de características físicas e ações dos personagens. Isso é muito gratificante, acho que essas respostas do público são o que tem de mais gratificante no trabalho.
Eu fiquei um pouquinho curioso para saber como é que funciona, por exemplo, a audiodescrição de uma cena de dança.
Cada roteiro é um universo muito singular. E a dança é um desafio imenso. É necessário um envolvimento do audiodescritor nos ensaios, entender a criação dos movimentos, dos argumentos do coreógrafo. Não será possível, por uma questão de tempo disponível para inserções, descrever tudo, mas é super importante, neste processo de preparação, captar a essência da coreografia, figurino, cenário, e tudo que for possível pesquisar.
Por exemplo: estou me lembrando de uma coreografia muito especial que se chama Basta Um Olhar, que foi desenvolvida pela nossa coreógrafa, Mara Cordeiro, da ACIC. Ela dança com um rapaz que é cadeirante e com baixa visão, e ela não tem nenhuma deficiência. Em alguns momentos ele sai da cadeira, em outros, os dois interagem sobre a cadeira em movimento. É baseada na história da Bela e a Fera, e isso inspirou o figurino e a forma de movimentação deles, com aproximações e afastamentos, alternância entre movimentos leves e mais bruscos. São informações importantes, presentes no processo de criação coreográfica e é super relevante que seja descrito. Assim como a fisionomia, maquiagem, o olhar dos dançarinos um para o outro, quando possível.
A voz do audiodescritor também precisa estar de acordo: por exemplo, se é uma dança suave, cheia de romantismo, é preciso modular a voz de forma que se harmonize a esta atmosfera, pois quem está vendo, está percebendo leveza, suavidade nos movimentos.
É importante também, evitar o excesso de informações, para que não polua a experiência auditiva que também estará ocupada da música, dos sons dos passos no palco, tudo isso é importante.
Em alguns momentos, peças teatrais mesclam atuações coreográficas. Na peça A última dança, havia um momento coreografado, movimentos bem mecânicos, rápidos, remetendo ao maquinário, ao esforço repetitivo do operário. Era de grande relevância entender esta construção, para que fosse descrita e isto tudo faz parte das escolhas tradutórias e posteriormente, da validação com a parceria fundamental com o consultor com deficiência visual.
Para entrar em contato com Carla Azevedo: https://www.linkedin.com/in/psicarlaazevedo/
Para entrar em contato com a ACIC: http://acic.org.br/