As traduções de termos comumente empregados na cultura popular também podem se cristalizar. Expressões como estar encrencado (to be in trouble) podem fazer parte da memória dos espectadores de filmes, séries e animações dubladas. Se, por um lado, essa cristalização agiliza o processo de tradução e gera familiaridade junto ao público, por outro, pode conter problemas, se o termo empregado não for a melhor escolha.
Bitch—um termo comum em cultura de massa anglófono—é comumente traduzido por vadia. Como acontece com muitas lexicalizações adjetivais no português, o feminino vadia tem conotações sexuais que o masculino vadio não apresenta (compare-se puto x puta, vagabundo x vagabunda, honesto x honesta); embora, talvez, o contexto de uso do inglês abone essa tradução em certos casos, não deixa de me surpreender, pois o termo, em suas definições de dicionário, não tem conotação fortemente sexual. Seus principais significados dicionarizados são os seguintes:
substantivo
- a fêmea do cachorro, cadela
- pessoa (especialmente uma mulher) rude, desagradável ou de difícil trato
- algo desagradável
- reclamação, diálogo pautado em reclamar
verbo
- reclamar
A ordem das definições varia, e nem todos os dicionários mantêm o significado biológico de cachorro-fêmea em primeiro lugar. Algumas definições são oferecidas apenas por poucos dicionários, estando, inclusive, mais próximas de certos usos populares (a lexicografia geralmente é lenta em incorporar gírias):
- ofensivo: designação genérica para mulheres
- informal: designação genérica para pessoas
- antigo: mulher lasciva
Finalmente, apenas o Cambridge Dictionary parece elencar um uso comum, diametralmente oposto ao significado de pessoa desagradável:
- pessoa facilmente manipulável, pau-mandado, capacho
Este último sentido parece atrelado a locuções variantes de to be someone’s bitch. Parece fácil perceber que a popularização do termo levou-o a expansões de significado que o tornaram cada vez mais genérico:
- mulher desagradável > pessoa desagradável > pessoa
- mulher desagradável > algo desagradável > reclamação > reclamar
Apenas um dicionário dos consultados oferece o significado com conotação sexual, ainda assim, descrevendo-o como um uso mais antigo. Em português, em inúmeros casos, bruxa ou megera (embora seja um termo menos comum) talvez fossem traduções melhores que vadia; em outros, mulher seria o termo mais adequado, embora a conotação negativa do uso seja perdida (o que, em alguns casos, pode ser prejudicial).
Restariam duas perguntas:
- Por que uma tradução que quase nenhum dicionário abona se tornou a norma na cultura de massa brasileira? Conforme aventado anteriormente, seus contextos de uso podem ser os responsáveis; especialmente no campo da música popular, segundo creio, seria fácil imaginar que uma mulher a quem se deseja ou vista como desejável e denominada bitch seria uma vadia, embora o termo, em muitas dessas canções, tenha a denotação mais genérica dentre as acima arroladas.
- Vale a pena corrigir ou propor novas traduções a um termo de tradução já cristalizada? Existe um elemento convencional no traduzir que perpassa todos os tipos de tradução—da mais técnica à mais popular—; uma tradução que não seja, inicialmente, a mais correta pode se tornar moeda corrente, e assumir significados próprios do termo-fonte devido aos contextos de uso. Afinal, quem decide os significados não são os lexicógrafos ou dicionários, mas a comunidade de falantes: é em uso que conseguimos perceber os verdadeiros significados dos termos (a inquietação que me levou a escrever esta nota veio justamente de minha percepção de que o uso de bitch em cultura popular anglófona não parecia tão sexualizado quanto a tradução que recebe). Mesmo assim, no presente caso, não estou seguro de que os contextos consigam limitar o termo-meta vadia a significados não sexuais ou genéricos, justamente porque o contexto de uso do termo-fonte bitch, muitas vezes, é sexualizado. Creio que valeria a pena propor mais soluções, e evitar uma tradução que persiste no erro em boa parte dos casos.