Divas intradutíveis: marquetim e os limites da tradução

Divas intradutíveis: marquetim e os limites da tradução
Photo by Shreesha bhat / Unsplash

A tradução poética costuma suscitar uma sonífera polêmica sobre a possibilidade de se traduzir poesia; o humor e o marquetim não ficariam imunes aos bocejos inerentes à contenda, e talvez sejam melhores exemplos dos limites da tradutibilidade. Enquanto poesia e tradução poética envolvem processos puramente textuais, gerando produtos puramente textuais, humor e marquetim são, não raras vezes, multimidiáticos, compondo-se da interação entre conjuntos simbólicos plásticos, musicais, sonoros, gestuais, cinéticos, etc. Além disso, têm em comum a necessidade de que produtores e receptores compartilhem um horizonte de expectativas elevadíssimo: se o público desconhece a figura pública ou produto cultural dos quais o comediante fala, se os valores impulsionados pela propaganda não reverberam imediatamente no especator, não é gerada a identificação que leva ao riso, ou à compra. Os elementos mais finos e invisíveis da cultura (conhecimento imediato compartilhado, crenças, valores, estereótipos, etc.) são imprescindíveis, e, na ausência destes, soluções que satisfaçam uma cultura-meta em tradução se tornam escassas ou inexistentes.

Não desejo, com isso, integrar o coro dos descontentes e dizer que humor e marquetim sejam intradutíveis; apenas que têm maiores chances de serem traduzidos de modos mais indiretos, ou, como diria Christiane Nord, documentais. Uma tradução, em seu sentido estrito e originário, gera um texto-meta, pertencente ao mesmo gênero textual de um texto-fonte, e tem, junto ao novo público, função equivalente, por conseguir dizer (satisfatoriamente) as mesmas coisas na mesma ordem; o que se desvia disso, o que precisa se desviar desse roteiro elementar para encontrar função em tradução, levanta questionamentos acerca dos limites da tradutibilidade; o que se desvia demais disso parecerá intradutível, quando, na verdade, permitirá formas distintas de tradução.

Dos três componentes da Saturadíssima Trindade da Intradutibilidade, o marquetim é o mais arredio. Uma presentação de stand-up, filme ou seriado podem ser legendaos ou dublados, e alcançar enorme sucesso (às vezes, maior que na cultura-fonte); nunca, que seja de meu conhecimento ao menos, fomos submetidos a um comercial estadunidense legendado ou dublado, para vender o mesmo produto em nosso país. O mais próximio que vi disso é, justamente, o objeto central desta reflexão: um comercial de chocolates estadunidense que recebeu recriação brasileira, sem o mesmo grau de sucesso.

A marca Snickers produziu um comercial no qual um grupo de homens conversa com uma mulher de temperamento difícil, interpretada por Aretha Franklin; a mulher se acalma e se transforma num rapaz ao aceitar uma barra do chocolate; no Brasil, Cláudia Raia e Betti Faria fizeram as divas, em situações que seguem o esquema descrito. Aqui, os comercias foram considerados misóginos, e não agradaram o público-meta Por quê?

Aretha Franklin: Dá pra aumentar o ar-condicionado. Tá um calor de matar. Jovem1: Tá ligado, não notou? }Aretha: [bate no jovem 1]: E isso, notou? Jovem 2: Jeff, come um Snickers. Aretha: Por quê? Jovem 2: Você vira uma diva sempre que tá com fome. Come pra gente poder coexistir. Aretha: ui.. eu viro uma diva.. Jovem 1: Come logo. Aretha: ok Jovem 1: Obrigado. Jovem 2: Melhor? Jeff [Aretha Franklin]: Melhor. Liza Minelli [Jovem 1]: Dá pra tirar o joelho do encosto do meu banco? Você não é você quando está com fome. Snickers mata sua fome.

A resposta mais imediata está na descrição acima: no momento brasileiro atual, a misoginia inerente a dizer que um homem se porta feito uma histérica (a palavrinha que, talvez inconscientemente, ronda as peças publicitárias) não foi bem-recepcionada. Estaria ausente do original? Não, mas, à versão brasileira, falta um elemento basilar presente no quadro referencial da cultura fina, a saber: o conceito de diva.

Quando Jeff, interpretado por Aretha Franklin, está dando seus chiliques, é chamado de diva. Aretha Franklin é uma diva: uma cantora rica e famosa, de reputação estabelecida e reconhecido talento vocal, que, por conta disso, pode se dar ao luxo de uma expressão social irrepressa, agindo de modo irrazoável ou agressivo sem temer represálias. Liza Minelli (que também aparece ao final), Mariah Carey, Sandra Bernhard e mesmo cantoras líricas como Jessye Norman, seriam, todas, divas; atrizes como Meryl Streep, Glenn Close, Judi Dench, etc. parecem se enquadrar menos no conceito, justamente por serem atrizes, não cantoras. Assim, o conceito de diva, para além da misoginia, apresenta dois componentes de classe: classe artística e classe social. Essa complexidade, imediatamente perceptível na cultura onde o conceito é gerado e circula correntemente, abranda o componente misógino (não se está dizendo que o rapaz se comporta feito mulher, mas feito um tipo muito raro e específico de celebridade feminina), garantindo o sucesso.

No Brasil, escolheram-se atrizes, não cantoras, o que, por si, indica que o conceito central foi mal-compreendido. Não obstante, nenhuma cantora brasileira se enquadra no estereótipo; subalterna à cultura anglófona, nossa cultura não tem força de produzir cantoras com o mesmo quilate internacional de suas colegas estadunidenses: Elis Regina e Nana Caimmy, sabidamente temperamentais, não seriam divas, tampouco Elza Soares, Aracy de Almeida, Ângela Maria, Gal Costa, Zizi Possi, Clara Nunes, etc. Não se trata, aqui (espero não precisar dizer, mas digo) de comparar talentos, e sim da força socioeconômica que têm os países de impor sua cultura e suas figuras públcias ao mundo. Assim, por fatores culturas internos tanto quanto por fatores socioeconômicos, o conceito de diva, mesmo que seja reconhecido pelo público brasileiro quando se depara com produções estrangeiras que o veiculam, não é imediatamente acionado pelos comerciais aqui produzidos para a marca. Na ausência desta referência basilar, a histeria salta à vista, e angaria reações negativas: a adaptação fracassa, pois o marquetim tem dificuldades imensas em transpor elementos da cultura fina, justamente os responsáveis por seu sucesso.

Os comerciais, seriam, portanto, traduções ruins do original? Ruins, talvez; traduções, nunca. Não os considero traduções, pois, embora siguam esquema idêntico, alteram à larga o componente semântico que o veicula, mesmo onde não seria impossível preservá-lo. Não existe qualquer compromisso com minúcia semântica, nem mesmo a obrigatoriedade de informar o espectador de que se trata de uma peça originária de outro país: os compromissos do tradutor estão todos ausentes.

O que, isso sim, afirmo, é que, para compor os comerciais, foram empregadas ações tradutórias (ver nota), ou seja: técnicas de tradução empregadas para produzir um texto que não é, propriamente falando, uma tradução. Quando um jornalista brasileiro oferece uma notícia sobre política internacional, por exemplo, necessita traduzir trechos ou palavras de suas fontes, mas a peça jornalísitca que produz não é tradução de nenhuma delas. No caso dos comerciais, por exemplo, a interação entre a diva e os demais rapazes não segue o roteiro, tampouco o momento em que a barra de chocolate é oferecida, mas, deve haver o momento da oferta após uma altercação, sendo altercação, oferta e a ordem em que ocorrem transpostos da fonte. O reclame ao final, por sua vez, é tradução direta do reclame do comercial estrangeiro.

O que podemos aprender com este exemplo raro é que a tradução de produtos culturais dependentes de identificação fortíssima entre produtor e público no tangente a elementos da cultura fina expõe os limites da tradução. Note-se que o roteiro do comercial foi intencionalmente traduzido acima; não há intradutibilidade em sentido amplo; o que parece impossível é gerar uma tradução em sentido estrito, mantendo minúcia semântica, ordenamento textual, gênero textual e equivalência funcional. Sempre se pode traduzir; nem sempre, porém, pode-se otimizar a tradução.