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É galego mas é português: um devaneio trovadoresco

É galego mas é português: um devaneio trovadoresco

Tempo atrás, aludi à dificuldade de se formalizar a diferença entre língua e dialeto que configura não só nosso falar quotidiano sobre as línguas, mas também os estudos formais sobre a linguagem. Conceitos como variação e mudança na sócio-lingüística, as árvores de parentesco entre línguas, e mesmo a idéia de que se pode adquirir uma língua materna ou aprender uma língua estrangeira são calcadas na intuitivamente evidente existência de mais de uma língua. Mas se, sincronicamente, faltam ainda distinções que formalizem a intuição, quando partimos para a diacronia é que vemos o problema em todas as suas dimensões.

Essa discussão me levou ao galego-português. A leitura da poesia trovadoresca nos confronta com um texto ao mesmo tempo familiar e estrangeiro. A rigor, não os traduzimos para o português porque são português. Duas edições relativamente recentes de poesia trovadoresca publicadas no Brasil—O caminho poético de Santiago (org. Yara Frateschi Vieira, Maria Isabel Morán Cabanas e José Antônio Souto Cabo) e Fremosos cantares (org. Lênia Márcia Mongelli)—nos trazem uma seleta da qual constam notas e glossários, não traduções. Estranhezas à parte, por vezes é mais fácil ler uma cantiga de amigo que o Homero nos difíceis decassílabos de Manuel Odorico Mendes—nome que talvez pertença mais às discussões sobre tradução que às sobre épica clássica—ou, contemporaneamente, a livre Alexandra em tradução de Trajano Vieira (que, confesso, ainda está me derrotando).

De minhas aulas na graduação, lembro de uma professora de Literatura Portuguesa que tachava “tolinhas” às cantigas de amigo. De fato, tendem a ser breves, repetitivas—tanto internamente quanto em conjunto—e de vocabulário limitado. Não obstante, ouvindo uma das minhas favoritas—“Ai Deus, se sab’ora meu amigo”, de Martim Codax—, duas curiosidades se apresentaram.

A primeira está justamente nesse processo de mudança, que abriu o texto para intepretações impensáveis e filologicamente irracionais. Seus versos que mais me chamam a atenção são os seguintes:

ergas meus olhos que choram migo!

ergas meus olhos que choram ambos!

Ergas significa “exceto”, mas, hoje, é muito mais facilmente identificável como flexão do verbo erguer; tampouco a locução erguer os olhos soa particularmente esdrúxula. É fácil, ao se escutar uma canção qualquer em língua estrangeira (posso dizer isso do galego-português?), que prestemos atenção isolada a trechos, sem conexão entre as partes da letra: uma palavra que conhecemos, as poucas coisas que conseguimos compreender quando o intérprete não foi agraciado com a cristalina dicção de uma Bidú Sayão ou de uma Ella Fitzgerald, e mesmo um trecho que ouvimos errado. Isoladamente, os versos acima me encantaram com uma beleza que jamais seria sua—a idéia vaga de que algum amado perdido toca o rosto da amada, fazendo-a olhar para cima, a visão turvada pelas lágrimas.

Isso seria suficiente para justificar uma tradução integral do texto? Provavelmente não: há mais coincidências que dissidências entre a nossa língua e os versos—mesmo migo não é nada tão extraordinário que precise ser traduzido ou corrigido. Mas, como todo tradutor, ao ler algo estrangeiro (novamente, tenho direito a dizer isso?), ocorre-em amiúde matutar como traduzi-lo, e isso me levou à segunda curiosidade.

Sim, o texto é repetitivo. Mas a repetição não se dá apenas pelo puro e simples dizer exatamente a mesma coisa duas vezes. Dá-se um pouco à maneira dos dísticos bíblicos: a repetição apresenta alguma variante. Os provérbios numéricos e os dísticos em Jó variam, certamente, de modo mais drástico; por vezes, talvez não percebamos que dois versos contíguos são o segundo uma forma de se reescrever o primeiro. A lírica trovadoresca é muito mais evidente em sua reiteração do já dito. Mesmo assim, ao prestar mais desperta atenção ao texto de Martim Codax, percebi que havia, também ali, uma técnica de repetição. O trovador é um obcecado por sua dor; se a obsessão nunca acha outro assunto, faz alguma questão de achar outros modos de falar dele.

Observemos uma cantiga de D. Dinis:

(A) Amad’e meu amigo,
     valha Deus!
vede’la frol do pinho
     e guisade d'andar.

(B) Amig’e meu amado,
     valha Deus!
vede’la frol do ramo
     e guisade d’andar.

(C) Vede la frol do pinho,
     valha Deus!
selad’o baiozinho
     e guisade d’andar.

(D) Vede la frol do ramo,
     valha Deus!
selad’o bel cavalo
     e guisade d’andar.

(E) Selad'o baiozinho,
     valha Deus!
treide-vos, ai amigo,
     e guisade d’andar.

(F) [Selad’o bel cavalo,
     valha Deus!
treide-vos, ai amado,
     e guisade d'andar.]

A estrutura, aparentemente simples, esconde diversos rigores. Vejamos:

  • As estrofes são pareadas por repetições com variantes: AB, CD e EF. As repetições ocorrem no 1o e no 3o versos; o 2o e o 4o atuam como refrães.
  • Simples como sejam, as cantigas de amigo são o lugar onde a sinonímia encontra seu mais confortável regaço: os pares amigo x amado (AB—EF), frol do pinho x frol do ramo (AB—CD) e baiozinho x bel cavalo (CD—EF) aparecem, cada um, duas vezes. Chama atenção o 1o verso de AB, onde as palavras amigo e amado não substituem uma à outra, mas mudam de posição.
  • São as variações por sinonímia e as repetições ipsis litteris que abrem espaço controlado para informações novas: os 3os versos em AB são os 1os em CD; igualmente, os 3os versos em CD são os 1os em EF. Quando o 3o verso de uma estrofe é deslocado à 1a posição na estrofe seguinte, abre-se espaço para o acréscimo de informação que garantirá a progressão temática: a flor sede lugar ao baio, e o baio ao pedido final de que venha rápido o amigo.
  • A última estrofe, F, é apresentada entre colchetes: trata-se de uma reconstrução crítica. Tamanho o rigor estrutural do poema que pode uma estrofe manca dos manuscritos ser recuperada com base nas anteriores.

O resultado semântico é um gostoso passeio. A amada convida o amante a vir-lhe ao encontro em seu cavalo—dócil, amigável e pronto a cavalgar—por uma senda em flor. O caminho é prazeroso e lento; a paisagem, como o texto, muda vagarosamente. O sedutor vagar contrasta com a pressa final: treide-vos, ou seja, “vem depressa”.

Essa estrutura saborosamente binária pode admitir maiores variações; no supracitado poema de Martim Codax, vemos:

Ai Deus, se sab’ora meu amigo
(1) com’eu (2) senheira (3) estou (4) em Vigo!
     E vou namorada…

Ai Deus, se sab’ora meu amado
(1) com’eu (4) em Vigo (2) senheira (3) manho!
     E vou namorada…

A nós, porém, que traduzimos desde ou para o português, o maior pesadelo que os jogos variantes da lírica trovadoresca apresentam é o da não-tradução: se os compreendemos (quase) tão bem e são (ainda) alguma forma de português, para que traduzi-los? Se nos arriscarmos a tal, as armadilhas da proximidade serão ainda maiores do que as que já nos atormentam quando traduzimos desde o espanhol: quando o verso é praticamente todo reconhecível como português, traduzir parece restringir-se a modificar uns poucos itens. Não obstante, a rigorosa estrutura métrica, o programado controle na apresentação de informações dadas e novas, a coincidência praticamente absoluta são amarras formais que, se respeitadas em tradução, diminuem sobremaneira a possibilidade de que se substitua apenas um ou dois itens.

A lírica trovadoresca—algo mais que familiar, algo menos que estrangeira—desafia-nos a aceitar que podemos, também nós, sermos estrangeiros em nossa própria língua.