Endosso ou denúncia: uma tirinha de Carlos Ruas
Esta manhã, ao abrir o Instagram, deparei-me com uma das tirinhas do cartunista carioca Carlos Ruas, de sua página Um sábado qualquer, postada ontem (domingo, 07/jul):
Embora não me seja possível contabilizar precisamente, a maioria dos comentários pareceu negativa ao conteúdo, considerado machista por endossar a cultura do estupro; seguramente, seguiram-se os meta-comentários, acerca do “mimimi” feminista, e os contra-ataques das leitoras.
Minha própria reação inicial foi a de um certo estranhamento, rapidamente confirmado pelos comentários desgostosos. Gosto de ler comentários em plataformas como Instagram e YouTube, pois me dão uma medida avaliativa rica, da qual a análise textual deve se beneficiar sempre que possível: o horizonte de expectativas; por praticidade, vou emprestar a definição abaixo:
O horizonte de expectativas é o “conjunto mental” ou enquadramento compartilhado dentro do qual, em uma cultura, uma determinada geração compreende, interpreta e avalia um texto ou obra de arte. Inclui conhecimento de convenções e expectativas textuais (e.g. relativas a gênero e estilo) e conhecimento social (e.g. códigos morais). É um conceito que vê a leitura (e os significados que produz) como variáveis históricas. O termo é central à teoria da recepção do crítico alemão Hans Robert Jauss.
(Oxford Reference, minha tradução.)
Antes do advento da Internet e da conseqüente explosão de produção escrita por parte de leitores-internautas—ou seja, de pessoas que, embora registrando por escrito suas opiniões, não são profissionais da pena—, a análise de como determinado período interpreta dada obra de arte ficaria sujeita à escassa evidência textual geralmente produzida por profissionais qualificados: críticos, escritores, jornalistas, professores, etc.
Hoje, porém, fãs e usuários contribuem fartamente com suas (nem sempre técnicas, dificilmente graciosas, não raro perspicazes) opiniões, o que nos permite compreender imediatamente que elementos de uma dada cultura estão sendo acionados na produção de interpretações e julgamentos. O que segue pretende utilizar brevemente os comentários à tirinha de Ruas para explicitar esse horizonte e compreender outro fenômeno muito comum à recepção contemporânea: a polêmica.
A tirinha pode ser considerada polêmica na medida em que as reações que angaria são, em grande parte, polarizadas; estas reações nos auxiliarão a compreender que elementos na tirinha geram a polarização não-resolvida. A análise abaixo recupera uma amostra pequena dos comentários inicialmente feitos, e demonstra as linhas de frente interpretativas que se foram formando nas primeiras horas após a publicação da tirinha:
Comentários sobre a tirinha
Dos comentários inicialmente dirigidos diretamente à tirinha, uma parte significativa viu o conteúdo como ofensivo: a cantada no primeiro painel foi percebida como naturalizada pelo autor, que a pode haver retratado como um gesto “corriqueiro” ou “inocente”; a idéia de que uma cantada possa ser hilária também deixou muitas leitoras desconfortáveis, uma vez que, para elas, trata-se de um desconforto real, ligado a sensações de insegurança e medo.
Assim, simplesmente retratar uma cantada como comportamento mecânico e impensado por parte de um homem—o Deus de Ruas é gendrado, claramente identificado como um homem cisgênero branco—aciona uma gama de sentimentos negativos, que causa rejeição imediata:
Algumas leitoras buscaram estratégias de aproximação, mostrando-se fãs da tirinha. O comentário abaixo aponta reincidência (a locução “Vira e mexe” denota comportamento recorrente, não exatamente corriqueiro):
Algumas leitoras ser dirigiram diretamente ao autor, fazendo um apelo pessoal e uma sugestão; no segundo comentário abaixo, é clara a identificação da leitora com a situação de assédio. De certa forma, são comentários que tratam a postura do autor como “reformável” e, portanto, abrem-se ao diálogo.
Outra fã fez uma análise mais completa: a resposta de Deus a Zeus no terceiro painel parece, de fato, implicar que Deus não haveria passado a cantada se soubesse que Atena reagiria; o comentário insinua que haveria, da parte de Deus, uma expectativa de passividade por parte da deusa, segundo uma norma comportamental de não-reação:
Uma leitura buscou divisar as intenções do autor como experimentais; ao fazê-lo, critica a originalidade da idéia. O juízo ético se alia a um estético:
Houve, porém, comentários que procuraram perceber a tirinha como uma denúncia ao invés de uma naturalização. Estes, provavelmente, focam-se mais na atitude de Atena ao revidar que na de Deus ao passar a cantada. O primeiro comentário abaixo demonstra a empatia da leitora pela postura combativa da deusa; o segundo e o terceiro—de uma leitora e um leitor, respectivamente—apontam para a misoginia do intertexto bíblico; o terceiro reconhece ainda que, dadas as críticas negativas, o autor pode haver sido infeliz em sua forma de denúncia:
Os dois primeiros acima avaliam tanto o conteúdo da tirinha quanto as reações a ela; sua defesa busca corrigir interpretações contrárias, embora reconheçam a atitude de Deus como machista e repreensível. Entre os comentários que emitem juízo simultâneo sobre a tira e as demais reações, este, bastante sucinto, escapa à polarização imediata:
O leitor parece reconhecer o atitude machista de Deus (o que poderia fazer com que se encaixasse nas reações que vêem denúncia), mas vem em defesa das leitoras ofendidas.
Comentários sobre outros comentários
Conforme apontado acima, um grupo de comentários irá se focar exclusivamente nos demais comentários, condenando ou atacando a tirinha indiretamente, através de sua condenação de outras atitudes frente a ela.
Leitores homens se queixaram do “mimimi” das leituras feministas contrárias ao texto, com chavões sobre “os velhos tempos” e sobre como “o mundo de hoje está chato”; são leituras que inocentam o humor de caráter sócio-político; também tendem à agressão pessoal:
As leitoras prontamente reagem, acusando-os de falta de empatia; os contra-ataques também lançam mão de chavões anti-machistas, como o uso pejorativo da palavra macho, com ou sem seu costumeiro adjetivo, escroto:
Isolado, um comentário ignora a polêmica e se foca em um detalhe técnico da narrativa, demonstrando como potencialmente problemático o uso ex machina de Zeus no terceiro painel:
Motivadores internos e externos de interpetações polêmicas
A dificuldade interpretativa apresentada pela tirinha tem motivações internas e externas. As externas, mais propriamente relativas ao horizonte de expectativas, dizem respeito ao surgimento do que se convencionou chamar cultura do estupro; as internas, à estruturação da tirinha. No cruzmanto entre expectativa e estrutura, as ênfases de diferentes grupos de leitores levarão à polarização das reações.
O conceito do que seja um ato de agressão sexual vem sendo expandido e englobando todo e qualquer gesto de imposição da própria libido sobre a de terceiros (geralmente, a de homens sobre mulheres). O primeiro comentário supracitado explicita a relação que agora se estabelece entre o contato físico e a insinuação verbal como vertentes de uma atitude reificante relativamente ao corpo feminino. Em uma sociedade que desconfia mesmo dos casos claros de ato sexual não-consensual, a idéia de que um “elogio” ou uma “inocente” passadinha de mão possam ser ofensas graves ainda não foi amplamente aceita.
Algumas pesquisas demonstram que os homens vêm tendo dificuldade em compreender o que seja estupro, seja em sentido estrito, seja em sua relação a outos tipos de assédio. Em 2015, as pesquisadoras Sarah H. Edwards, Kathryn A. Bradshaw, e Verlin B. Hinsz publicaram um artigo intitulado Denying Rape but Endorsing Forceful Intercourse: Exploring Differences Among Responders (Negar o estupro mais endossar intercurso forçado: explorando as diferenças entre os respondentes) (Violence and Gender 1.4, 2014), no qual estudam as diferenças entre uma descrição comportamental (e.g. usar de força para obter sexo) e um rótulo (estupro), apontando que inúmeros homens endossam o comportamento ou o admitem quando é descrito, mas negam sua associação ao rótulo. Esse tipo de estudo parece harmonizar com o testemunho de Madhumita Pandey, que, durante seu doutordado, entrevistou aproximadamente 100 homens condenados por estupro na prisão de Titar, em Nova Deli:
Conversar com os estupradores é chochante. Eles conseguem fazer com que você sinta pena deles; como mulher, não é assim que deveria me sentir. Quase me esquecia que estavam lá presos por haverem estuprado uma mulher. Minha experiência mostra que muitos deles sequer se dão conta de que o que fizeram é estupro. Não compreendem o que seja consentimento.
(Reportagem de Vidhi Doshi publicada no The Washington Post, 11/set/2017. Minha tradução.)
Assim, o ato de Deus na tirinha em questão, para determinados grupos (em sua grande maioria, mulheres) se alinha ao endosso à cultura do estupro. A trivialidade de o apresentar como casual ou humorístico gera fortes reações das leitoras, que se identificam com situações semelhantes e, reiteramente, apontam para o caráter diário dos abusos. Leitores homens, por sua vez, não interpretando desde o ponto de vista da cultura do estupro, mas de idéias saudositas e anti-feministas, rechaçam estas reações; uns poucos, mais simpáticos, conseguem racionalizar a tirinha, assumindo um posicionamento que endossa as queixas, mas não demonstra a mesma reação emocionalmente carregada.
Estruturalmente, a tirinha não apresenta elementos que indiquem de modo inequívoco seu alinhamento ideológico. Composta por três painéis e não mais que quinze palavras, apresenta uma ação, uma reação e suas conseqüências, ocupado, cada uma, exatamente um painel. Os deuses fogem, mas o final da caçada é incerto; Deus sugere, ao repreender o aviso tardio de Zeus, que poderia haver agido diversamente se soubesse da reação, mas não há retratação, compreensão ou arrependimento. Atena os persegue, mas não sabemos se os alcança ou o que fará.
Conforme leitoras e leitores se focam no primeiro ou no segundo painéis—ação de Deus, reação de Atena—, suas opiniões penderão para lado ou outro lado; o terceiro painel, igualmente, pode ter seu caráter anedótico (o diálogo entre Deus e Zeus) ou a perseguição de Atena como foco de atenção. Assim, o desempate entre opiniões parece se dar quano elementos externos—experiência compartilhada, o restante da produção do autor, etc.—são contrastados aos constituintes da narrativa.
Empatia e polêmica
De minha parte, creio que arte é uma porta para a empatia; o exercício criativo de simular outros seres vivos implica colocar-se em seu lugar; não se pode fazer isso sem ouvir atenta e empaticamente ao público—especialmente ao público que, em algum momento, demonstra-se fragilizado.
O fato de que tantas mulheres se hajam doído pela menção a uma cantada indica que uma parte crescente do leitorado vê o tema como sensível; mesmo que se considere que a tirinha denuncie (ao invés de endossar) a cultura do estupro, alguns temas são simplesmente muito carregados de conteúdos emocionais negativos para que sua simples menção possa ser abstratamente tragada.
Como homem, nunca passei por nada semelhante; meu é o privilégio (sim, privilégio) de uma atitude abstrata e desinteressada, e portanto meu o ônus de empregar essa atitude de forma a buscar me aliar aos valores éticos que me parecem mais justos, e me solidarizar com a dor de quem não deseja ter seu medo e insegurança trivializados. Minha solidariedade vai às leitoras que manifestaram seu desconforto.
Ao se envolverem em semelhatnes polêmicas, penso que produtores culturais de um modo geral (e os humoristas em particular) devem ficar atentos; ao invés de se justificarem pura e simplesmente, devem buscar empatia com a parcela de seu público que demonstra dor e desconforto com conteúdos “polêmicos”. O aumento de engajamentos não vale a perda da solidariedade.