Espera (Erwartung), Marie Pappenheim/Arnold Schönberg

Espera (Erwartung), Marie Pappenheim/Arnold Schönberg

Tradução de Erwartung, libreto de Marie Pappenheim (1882-966) para o melodrama em um ato de Arnold Schönberg (1874-951). (1909, estréia 06/jun/1924.)

Uma interpretação da obra pode ser ouvida no Arnold Schönberg Center. A edição-fonte da tradução abaixo pode ser consultada aqui.


cena 1

À beira do bosque. Sob a luz da lua os campos e caminhos; alto e sombrio o bosque. Iluminados apenas os primeiros troncos e o início da ampla estrada. Surge uma jovem. Frágil, trajando branco, portando jóias. Rosas vermelhas ao vestido, algumas parcialmente despetaladas.

[Hesitante:] É por aqui?… Não se vê o caminho… Prateadas reluzem as árvores… como bétulas!… [Fitando absorta o chão:] ó, nosso jardim… Certamente, as flores que eram para ele murcharam… A noite é tão quente… [Subitamente ansiosa:] Tenho medo… [Ouvindo o bosque, apreensiva:] Como sopra forte o vento… como uma tempestade que se levanta… [Esfrega as mãos, olha para trás:] Tão horríveis o silêncio e o vazio… mas aqui ao menos há claridade… [Olha para cima:] A lua estava antes tão clara… [Agacha-se, escuta, olha em frente:] Sempre os grilos… com sua canção amorosa… sem palavras… é tão doce estar junto a vocês… a lua se levanta… [Irritada:] És uma covarde… não o queres procurar?… Morra então aqui… [Volta-se em direção ao bosque:] Como é ameaçador o silêncio… [Olha em torno timidamente:] A lua é puro horror…conseguirá ela enxergar lá dentro?… [Temerosa:] Eu sozinha… em meio às sufocantes sombras … [Cria coragem, caminha rapidamente bosque adentro:] Cantarei… ele então me escutará…


cena 2

Escuridão mais profunda, caminho mais amplo, árvores altas e grossas. Ela tateia o caminho adiante.(Ainda fora de cena.)

Este ainda é o caminho?… [Agacha-se, experimentando o caminho com as mãos:] Aqui está mais nivelado… [Gritando:] O quê?… Solta-me!… [Tremendo, tentando examinar a própria mão:] Algo me prendeu?… Não, foi alguma coisa que rastejou… [Passa as mãos pelo rosto em um gesto violento:] Também aqui… Quem está me tocando?… [Golpeia-se com as mãos:] Fora! Saia daqui!… pelo amor de Deus… [Segue adiante, com os braços estendidos:] Então, o caminho é amplo… [Silenciosa, reflexiva:] Era tão tranqüilo entre os muros do jardim… [Muito silenciosa:] Nenhuma foice mais… nenhum ruído ou movimento… e a cidade envolta em uma neblina clara… eu a contemplava tão saudosa… e o céu tão imensamente profundo sobre o caminho por onde até mim vinhas… ainda mais transparentes e mais distantes… as cores do entardecer… [Triste:] Mas não vieste… [Permanece parada:] Quem está chorando?… [Chamando, gentilmente, ansiosa:] Há alguém aí? [Espera. Mais alto:] Há alguém aí? [Escuta atentamente novamente:] Ninguém… [Escuta novamente:] Mas havia alguém… Vem um murmúrio do alto… movendo-se de galho em galho… [Horrorizada, tenta escapar de lado:] Vem para cima de mim… [O grito de uma ave noturna. Furiosamente:] Para cá não!… Deixa-me… Senhor, ajuda-me… [Silêncio. Apressadamente:] Não era nada… [Começa a correr, cai:] Depressa, depressa… [Já fora de cena:] O que é isso?… um cadáver?… não, só um tronco de árvore…


cena 3

O caminho sempre na escuridão. Ao lado do caminho, uma faixa ampla, mais iluminada. Ilumina o luar uma clareira. Nela, grama alta, samambaias, grandes cogumelos amarelos. A jovem sai da escuridão.

Dali vem uma luz!… [Suspiro aliviado:] Ah! Somente a lua… que bom… [Novamente meio angustiada:] Ali alguma coisa escura dança… uma centena de mãos… [Subitamente ganhando autocontrole:] Não sejas tola… é a sombra… [Docemente reflexiva:] Como tua sombra recaía sobre as paredes brancas… Mas logo tiveste de partir… [Ruídos. A jovem para, olha em torno de si e escuta um instante:] Estás me chamando? [Novamente sonhadora:] E falta tanto para chegar o anoitecer… [Leve rajada de vento.A jovem olha novamente:] As sombras rastejam!… Olhos amarelos, brilhantes… [Calafrios:] Tão salientes… como se estivessem sobre hastes… como encaram… [Farfalhar na grama. Horrorizada:] Não é uma fera, bom Deus, não é uma fera… tenho tanto medo… Amor, meu amor, ajuda-me… [Sai correndo.]


cena 4

Caminho aberto, iluminado pela lua, emergindo do bosque à direita. Prados e campos (faixas amarelas e verdes intercaladas). Um pouco à esquerda, a estrada se perde novamente na escuridão dos grupos de árvores. Inicialmente, vê-se à extrema esquerda apenas esta estrada; então, junta-se a ela uma outra, que vem de uma casa. Todas as janelas desta casa estão fechadas com persianas escuras. Uma sacada de pedra branca.

[Entra a jovem lentamente, esgotada. O vestido rasgado, os cabelos desgrenhados. Cortes sangrando no rosto e nas mãos.Olhando em torno:] Ainda não é aqui… Ao final desta estrada longa, nenhuma coisa viva… nenhum ruído… [Arrepia-se. Escuta:] Os amplos campos pálidos sem respirar, como se mortos… Nem um talo se move. [Olha ao longo da estrada:] Ainda a cidade… e lívida a lua… Nenhuma nuvem, sequer a sombra do vôo de uma ave noturna nos céus… essa palidez infinita de morte… [Permanece parada, vacilante:] Mal consigo prosseguir… E não me deixarão entrar… A estrangeira queria me afugentar! Talvez ele esteja doente… [Arrasta-se para junto do grupo de árvores à esquerda, sob o qual está totalmente escuro:] Um banco… preciso repousar… [Cansada, indecisa; nostálgica:] Mas há tanto tempo não o vejo… [Vai para baixo das árvores, empurrando alguma coisa com o pé:] Não, esta não é a sombra do banco… [Passando o pé, assustada:] Tem alguém aqui… [Inclina-se, escuta:] Não respira… [Tateia em direção ao chão:] Está úmido… Algo se move aqui… [Dirige-se para fora das sombras, à luz da lua:] Uma vermelhidão… Ai, minhas mãos estão cortadas… não, é que aquilo ali que ainda está húmido… vem de lá… [Em um tremendo esforço, busca arrastar o objeto:] Não consigo… [Curva-se; gritando horrivelmente:] É ele! [Vai ao chão. Após alguns momentos, ergue o tronco, de modo a deixar o rosto voltado para as árvores; desnorteada.] A luz da lua… não ali… ali há uma cabeça assustadora… o fantasma… [Olhando atentamente:] Quem dera desaparecesse… assim como aquilo no bosque… A sombra de uma árvore, um galho insignificante… A lua é traiçoeira… Ela está exangue… e por isso tudo tinge de vermelho-sangue… [Apontando com os dedos estendidos. Sussurrando:] Mas também logo se dissolverá… não olhes para lá… não mires naquela direção… Com certeza, está se desfazendo… assim como aquilo no bosque… [Vira-se com custoso silêncio, na direção da estrada:] Quero ir embora… Preciso encontrá-lo… Já deve ser tarde… [Silêncio. Imobilidade.Vira-se abruptamente, mas não inteiramente.Quase alegremente:] Não está mais lá… Sabia que desapareceria… [Já está novamente virada, subitamente olha mais uma vez o objeto:] Ainda está ali… Deus do Céu… [Inclina o tronco em frente, parece cair, mas rasteja com a cabeça baixa até lá:]Está vivo… [Tateando:] tem pele… olhos, cabelo… [Inclina-se em direção ao local, como se quisesse olhá-lo face a face:] Os olhos dele… tem a boca dele… Tu… tu… és ele… Há tanto tempo te procuro… no bosque… e… [Chacoalhando-o:] Escutas-me? Fala… olha para mim… [Inclina-se, horrorizada. Sem ar:] Deus, o que… [Gritando; corre um pouco em frente:] Socorro!… [À distância, com as mãos para cima:] Pelo amor de deus!… Escuta!… Ninguém me ouve?… [Olha desesperadamente em torno:] Está ainda ali. [Novamente sob as árvores:] Acorda… Acorda… [Suplicando:] Não estejas morto, meu amor… Não estejas morto… Eu te amo tanto… [Doce, insistente:] Nosso quarto ainda está meio iluminado… Tudo nos espera… As flores ainda exalam um forte perfume… [As mãos juntas, desesperada:] O que devo fazer… O que devo fazer agora para que acorde? [Dirige-se à escuridão, toma-lhe a mão:] Tua mão amada… [Retrai-se. Inquisitiva:] Tão fria? [Traz a mão para junto de si. Beija-a. Tímida, persuasiva:] Não se vai aquecer junto a meu peito?… [Abre o vestido.] Meu coração se incendeia pela espera… [Suplicando, suavemente:] A noite está quase no fim… Querias estar comigo esta noite… [Afastando-se:] Já é dia claro… Ficarás a meu lado durante o dia? Arde o sol sobre nós… Tuas mãos permanecem nas minhas… És meu… Olha para mim, amado, estou a teu lado… Olha para mim… [Ergue-se, olha para ele. Mais consciente:] Que rígido… Como estão assustadores teus olhos… [Em voz alta, lamuriosa:] Passaste três dias longe de mim… Mas hoje… com certeza… A tarde havia sido tão pacífica… Eu olhava e esperava… [Bastante absorta:] Sobre o muro do jardim, do lado oposto ao teu… É tão baixo… Então, ambos acenamos… [Gritando:] Não, não… Não é verdade… Como podes estar morto? Tua vida se espalhava por toda parte… Mesmo no bosque… Tua voz tão próxima do meu ouvido, sempre estavas junto a mim… Teu hálito em minhas faces… Tuas mãos em meu cabelo… [Angustiada:] Não é verdade… Seria verdade?… Tua boca ainda se curvava para receber meus beijos… Teu sangue ainda goteja em um ritmo tranqüilo… Teu sangue ainda vive… [Curva-se muito proximamente a ele.] Um veio rubro… Atingiram-te no coração… [Quase inaudível:] Quero beijá-lo com o último suspiro… Nunca mais te soltar… [Endireita-se a meio corpo. Fazendo carícias.] Olhar-te nos olhos… Todas as luzes brotam de teus olhos… Ficava tonta quando te olhava… [Sorrindo com as lembranças, misteriosa e doce:] Agora beija-me até a morte… [Olha-o intensamente. Subitamente, após uma pausa:] Que estanhos teus olhos… [Pasma:] Para onde olhas? [Violentamente:] O que estás buscando? [Olha em torno, em direção à sacada:] Há alguém ali? [Novamente olhando para trás, mão à testa:] O que havia ali da última vez?… [Sempre absorta:] Não estava também assim teu olhar?… [Buscando rememorá-lo intensamente:] Não, não estavas tão ausente… ou… subitamente te controlaste… [Vai se tornando cada vez mais claro:] E durante três dias estiveste longe de mim… todo o tempo… Nestes últimos meses tinhas pouco tempo para mim…[Queixosa, como que na defensiva:] Não, não é possível… será que… [Numa lembrança repentina:] Agora me lembro… Os suspiros enquanto estavas meio dormido… pareciam-se a um nome… Tiraste-me a pergunta que me pendia dos lábios com um beijo… [Reflexiva:] Mas então por que me prometeu vir hoje?… [Em furiosa angústia:] Não quero isso… não, não quero… [Levanta-se subitamente, olha em torno a si:] Por que te mataram?… Aqui, em frente a esta casa?… Foste descoberto?… [Gritando, como se tivesse uma convulsão:] Não, não… Meu único amor… isso não… [Trêmula:]A lua oscila… não consigo mais ver… Olha para mim… [Súbita:] Estás novamente a olhar para lá?… [Em direção à sacada:] Quem é ela?… A bruxa, a meretriz… A mulher dos braços alvos… [Com desprezo:] Como gostas de uns braços alvos… Como os deixavas vermelhos com teus beijos… [Com os punhos cerrados:] Seu… seu… seu canalha, mentiroso… seu… Como me evitam teus olhos! Encolhes-te de vergonha? [Chutando-o:] Ela te abraçou?… Não foi?… [Tremendo em repulsa:] Tão doce e ávido… E eu te esperava… Para onde ela foi, deixando-te a sangrar?… Quero arrastá-la para cá pelos alvos braços… assim [Gesticula; colapsa:] Não há mais lugar para mim… [Soluçando:] Nem mesmo a misericórdia de poder morrer contigo… [Vai ao chão, chorando:] Como te amei, como te amei… Eu vivia longe de todas as coisas… todas as coisas me eram distantes… [Profundamente contemplativa:] Não conheci ninguém como tu… durante todo este ano… desde a primeira vez que me tomaste a mão. Tão quente… Nunca havia eu amado alguém desta maneira… Teu sorriso e tuas palavras… Como te amei… [Quieta, soluçando. Então calma, levantando-se:] Meu amor… meu único amor… Amiúde a beijavas?… Era grande teu amor por ela? [Suplicante:] Não digas nada… Sorris dolorosamente… Talvez também hajas sofrido… Talvez também clame teu coração por ela… [Calma, cordial:] O que podes fazer?… Amaldiçoei-te… Mas tua piedade me fez feliz… Acreditava ser feliz…

Silêncio. Crepúsculo à esquerda, ao leste. Nuvens baixas no céu, iluminadas por um brilho pálido, uma luz amarela oscilando como a luz de uma vela.

[Levanta-se:] Meu amor, meu amor, amanhece… Que faria eu aqui sozinha?… Nesta vida sem fim… Neste sonho sem cores ou limites… Antes, meus limites eram os do lugar onde estavas… E todas as cores do mundo irrompiam de teus olhos… A luz vem para todos… e eu sozinha em minha noite?… A manhã nos separa… sempre a manhã… Com que intensidade me beijavas na despedida… Para um novo e solitário dia de espera… Já não despertas mais… Milhares de homens passam por mim… Não te distingo entre eles… Todos vivos, com olhos flamejantes… Onde estás?… Está escuro… Teu beijo como um sinal de fogo em minha noite… meus lábios ardem e se iluminam… na tua direção… Estás aí… [Indo na direção de algo:] Eu te procurava…