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Estrangeirismos em tradução

Em nossos textos, o que deve ser considerado um estrangeirismo? Como tratá-los ao redigir, revisar ou traduzir um texto?
Estrangeirismos em tradução
Photo by Sigmund / Unsplash

Existem períodos históricos nos quais uma língua recebe levas elevadas de termos estrangeiros: o empréstimo de estrangeirismos é moeda mais que corrente nas gírias, nas redes sociais e principalmente na terminologia de textos acadêmicos, científicos e técnicos de determinadas áreas. Para o tradutor, cabem duas alternativas: a não-tradução (supondo que o empréstimo seja muito recente e não tenha equivalente, ou que já tenha aceitação na área em questão) ou a busca pelo equivalente autóctone.

Mesmo assim, um estrangeirismo não deixa de gerar certa descontinuidade: sua grafia desacorda-se das palavras em redor, sua pronúncia gera confusão. Ao redigir, revisar ou traduzir um texto, como devemos identificar ou redigir um termo estrangeiro?

Infelizmente, o Acordo Ortográfico vigente (1990, vigente desde 2009) não define o que deve ou não ser considerado um estrangeirismo—aliás, a palavra não é usada uma vez sequer no corpo do texto. Suas poucas especificações quanto à grafia de termos estrangeiros são as seguintes:

mantêm-se nos vocábulos derivados eruditamente de nomes próprios estrangeiros quaisquer combinações gráficas ou sinais diacríticos não peculiares à nossa escrita que figurem nesses nomes: comtista, de Comte; garrettiano, de Garrett […] (Base I, 3o)
Conserva-se, no entanto, o trema, de acordo com a Base I, 3o, em palavras derivadas de nomes próprios estrangeiros: hübneriano, de Hübner, mülleriano, de Müller, etc. (Base XIV, Obs.)
Conservar nos nomes próprios estrangeiros as formas correspondentes vernáculas que forem de uso: Antuérpia, Berna, Cherburgo, Colônia, Escandinávia, Escalda, Londres, Marselha; OBS.: – Sempre que existam formas vernáculas para os nomes próprios, quer personativos, quer locativos, devem elas ser preferidas. (Bases do Acordo Ortográfico entre A Academia das Ciências de Lisboa e a Academia Brasileira de Letras, Nomes próprios)

Como se vê, exceções calcadas em nomes próprios estrangeiros são as únicas mencionadas. Não há menção a nomes comuns estrangeiros de inclusão recente, conseqüentemente, não há qualquer esforço em distinguir inclusões recentes das já estabelecidas.

A prática nos diz que nomes comuns estrangeiros devem ser destacados, e isso muitas vezes é feito de forma inconsistente ou deixado de lado, seja por descuido redacional ou pela percepção distinta do que seria um termo estrangeiro já arraigado na língua portuguesa: um neófito pensará que lead é uma inserção recente, mas um especialista em marketing o lê e emprega com tamanha freqüência que lhe parece mais do que aceitável (ambos, porém, aceitariam marketing como estrangeirismo já corrente).

Diante desse impasse, como tratar nomes comuns estrangeiros? Ofereço duas diretrizes simples:

Se a origem ainda é conhecida, o termo ainda nos soa estrangeiro. Atualmente, poucas pessoas atentariam à origem estrangeira de nomes como jeans e denim; embora este último ainda não conste de dicionários, nada em sua grafia ou pronúncia denuncia sua origem (do francês, diretamente ou através do inglês). Mas palavras de uso recorrente como shape e play não só são reconhecíveis, mas empregadas como termos que acrescentam um certo colorido à fala ou à escrita justamente por serem estrangeirismos. No meu entendimento, seria aconselhável italicizá-las.

Se a grafia destoa na nossa, de modo a confundir da pronúncia, o termo definitivamente ainda pode ser tratado como estrangeiro. A origem estrangeira de termos como abajur e cassetete (do francês abat-jour e casse-tête) é disfarçada por sua aclimatação ortográfica: sua grafia atual não só se adequa à nossa ortografia, mas reflete nossa pronúncia. Por sua vez, termos como establishment, mindfulness, hate, like, tweet, post, pet-friendly, etc., ao serem pronunciados por um brasileiro, sugerem uma ortografia bastante distinta (establichemente, maindefulnes, reite, laique, tuíte, poste, pete-frendli); as vogais do inglês, em particular, podem causar muita confusão a falantes menos familiarizados com o idioma, pois seu padrão de pronúncia é consideravelmente distinto do nosso, e muito menos previsível. Sinalizar pelo meio de itálico o caráter obviamente estrangeiro de semelhantes termos me parece um gesto de cortesia redacional.

Em meu entendimento, um dos principais desconfortos associados à sobrecarga de estrangeirismos ortográficos é justamente esse afrouxamento da relação entre ortografia e pronúncia; por mais que a ortografia—como um componente convencionalizado, da língua escrita—seja conservadora e não acompanhe a fala, sendo recheada de arcaísmos (o h mudo, a confusão entre s, ç, ss, a anulação ocasional da diferença entre s, z e x, ou entre g e j, etc.), a língua portuguesa ainda apresenta ortografia muito mais regular que o inglês, tendo pronúncia muito mais imediatamente inferível a partir da forma escrita. Sufocar nossa regularidade (defeituosa mas suficiente) com uma horda de estrangeirismos não identificados, pessoalmente, causa-me incômodo, e minha tendência particular é assinalar com itálicos quanto ainda esteja em desalinho com nossa ortografia, além de empregar equivalentes quando cabível (post é uma postagem, like é uma curtida, etc.) e, na falta destes, aportuguesar o que não ficar muito absurdo (trocar tweet por tuíte).

A desvantagem dessa prática, especialmente em textos técnicos de algumas áreas, parece óbvia: o texto se apresenta visualmente pintalgado de itálicos. Parece-me, francamente, um mal menor. Chamar atenção à sobrecarga de estrangeirismos talvez nos motive a buscar soluções próprias ou aclimatar alguns empréstimos mais antigos. Se, por um lado, é aconselhável evitar uma postura prescritivista retrógrada que resmungue pelo influxo de termos de outras línguas, por outro, fica evidente que existem momentos históricos quando o influxo parece aumentar drasticamente—o que parece ser o caso em nosso momento presente—, e que, mais que simplesmente aceitar, podemos refletir sobre o que isso tem a nos dizer: sabemos que os empréstimos não têm razões apenas culturais, mas sócio-econômicas, pois são os centros de poder econômico que se convertem em centros de poder cultural, espalhando seu vocabulário técnico e popular globo afora. O estrangeirismo é um fenômeno lingüístico comum; a subaltermidade econômica, cultural e intelectual que o motivam, por sua vez, são contingências históricas às quais cabe atentar.