Júlia (Julia), Wendy Rose
Diz que não passou dum sonho,
meu esposo, um truque engenhoso
do deus de latão dalguma vila
ou coiote fantasma, pra me assustar
alegando que nosso casamento
é malícia e ganância.
Repete
o quanto admiras minhas mãos,
como é encorpado meu chá de jasmim,
quão doce meu canto, meus olhos tão negros
que neles te perderias a nadar
homem feito peixe
ao mapeares o lago
que possuis.
Não foi só isso.
O quarto relegou
como fazendo pouco
destes dias quentes;
as cortinas se abriram dum sopro
subindo e descendo
contra o teto enluarado.
Levantei-me da cama feito um espírito
e, não sendo espírito, flutuei lentamente
para junto de meu grande espelho ovalado
para ver-me ali refletida
como a mulher de bronze polido
de pele suave e macia
que sei que sou
no escuro
por sobre a confusão
de perfumes franceses
e lá estava eu no espelho
e não estava.
Tornara-me dura
feito as pedras do templo
de Otomi, pêlos sobre minha face antiga
feito musgo negro, cinzento feito a névoa da selva
empapando em verde as mais altas copas
vi-me frágil
feito galhos secos quebradiços
de meus desfiladeiros invernais de areia
imóvel como se fosse
imóvel pra sempre.
Um quarto tão pequeno!
Mais não media que meus cotovelos estendidos
não mais alto que minha cabeça.
Um quartinho onde cantar
abrir as portas
com minha boca fria e graciosa,
meus lábios rijos, meus silêncios
mortos feito o ontem,
cruéis feito as crianças
frios feito as moedas
reluzindo
em teu punho rosado.
Outra mágica
no frio
daquele quartinho:
em meus braços
ou junto a mim
numa mesa alta
à minha direita:
uma bonequinha
parecida
comigo.
Meu esposo,
Repete
que não passou dum sonho;
desperto do calor
e hoje ainda é hoje,
o sol de verão e a pancada de chuva;
diz, esposo, o quanto me amas
por mim mesma, repete.
Tanto me assusta
a gravidez,
leoa
com filhote.
Poema originalmente publicado em The Halfbreed Chronicles (1985).
Notas:
Júlia: Júlia Pastrana (1834—1860), atriz e cantora mexicana, nascida em Sinaloa; sofria de diversas condições genéticas que lhe davam aparência estranha, a mais pronunciada sendo a hipertricose. Apresentou-se nos Estados Unidos e na Europa, sendo variamente chamada de mulher-babuíno, mulher-lobo, mulher-urso, mulher-cachorro; relatos de sua performance descrevem-na como poliglota, inteligente e sensível. Casou-se com seu empresário, Theodore Lent; faleceu de complicações do parto, poucos dias após a morte do filho, que compartilhava sua condição genética. Lent mandou empalhar os corpos; em 2013, seu corpo foi finalmente devolvido ao México para ser enterrado.
Otomi: Povo indígena do Planalto Mexicano; curiosamente, Pastrana estaria relacionada ao povo Mayo, que habita a região dada como de seu nascimento.