o tradutor uberizado
Recentemente, a precariedade das condições laborais de trabalhadores atuando como autônomos através de plataformas digitais tornou-se discussão viral, com o relato do entregador Thiago Dias, que faleceu à porta dos clientes, sem qualquer auxílio da empresa responsável pela entrega, a Rappi; a empresa foi acusada de absoluta falta de sensibilidade, ao simplesmente solicitar que os clientes (que socorreram Thiago) dessem baixa no pedido.
As condições de trabalho que levaram a óbito um prestador de serviços de baixa renda, glamourizado por eufemismos como empreendedor e autônomo, vêm sendo discutidas, e podem ser as molas-mestras da onda de “reformas trabalhistas” que o Brasil vem experimentando desde o impeachment da presidenta Dilma Rousseff. Estas condições não afetam apenas profissionais de mais baixa qualificação, mas também outros tipos de profissionais altamente especializados—incluindo, como buscarei demonstrar ao final, tradutoras e tradutores. Ressalto que o que segue não reflete o impacto da crise econômica gerada pela pandemia do novo coronavírus, embora seja importante lembrar que a visão de mundo favorável às novas relações de trabalho, abaixo descritas, também se encontra ameaçada por essa crise—que incrementou a fragilização laboral a elas ligada.
Em entrevista a André Antunes, o economista Mário Pochman (2016) ubicou a uberização em um quadro mais geral de transformações ocorridas no mundo do trabalho desde o século XX:
Uberização é o nome que estamos dando para a emergência de um novo padrão de organização do trabalho. Para dar uma visão histórica, podemos separar, na chamada sociedade urbana industrial, três formas de organização do trabalho: a primeira ganhou relevância a partir de 1910, o chamado fordismo, que representou a organização do trabalho em grandes plantas industriais. Isso dizia respeito à existência de um empregador com quantidades grandes de trabalhadores vinculados àquela empresa, em linhas de montagem que produziam do parafuso ao automóvel. Nesse sentido, há certa homogeneização das condições de trabalho e das lutas dos trabalhadores, porque eles passavam a se encontrar sob o mesmo teto, submetidos às mesmas condições de opressão e exploração do trabalho. […] A partir da década de 1970 temos um esgotamento do fordismo e o avanço do toyotismo, que também tem como referência a montagem de um automóvel. A empresa vai se fragmentando no interior do processo produtivo de tal forma que no mesmo local de trabalho você passa a ter diferentes contratos de trabalho, reunindo empresas especializadas nessa parcialização da produção. […] Uma realidade são os trabalhadores contratados pela montadora, outra é a realidade dos que são contratados por empresas cujos sindicatos são menores, não têm a mesma capacidade de pressão e luta, como é o caso dos vigilantes, da limpeza, da segurança e outras partes constitutivas das peças [automotivas]. […] O que estamos denominando de uberização é uma nova fase, que é praticamente a autonomização dos contratos de trabalho. É o trabalhador negociando individualmente com o empregador a sua remuneração, seu tempo de trabalho, arcando com os custos do seu trabalho.
Essa autonomização dos contratos é descrita por Dennis Pennel nos seguintes termos:
Estamos passando por uma casualização do trabalho, centrada na tecnologia de informação e na terceirização. O trabalho está ligado não mais a organizações, mas a indivíduos, empregados sob uma gama de diferentes contratos—temporários, por tempo determinado, subcontrato de meio-expediente, autônomo, etc. Os contratos não são mais continuados, mas baseados na demanda por expertise, e sua duração é reduzida de anos a dias ou horas. Os trabalhadores estão se tornando cada vez mais autônomos, e as companhias não mais trabalham para companhias, mas sim para indivíduos que se agrupam para entregar projetos em mercados de tempo real. (Todas as traduções minhas, exceto quando indicado.)
Pennel vê com bons olhos essas transformações:
O cenário otimista é que essas mudanças irão impulsionar a criação de novas indústrias e empregos, e uma gama de oportunidades econômicas para que as pessoas se tornem microempresárias. Acontece que a natureza mesma do trabalho está mudando. O trabalho costumava ser um lugar aonde ir; agora, torna-se cada vez mais uma série de tarefas a serem desempenhadas, muitas vezes por via remota, através “da nuvem”. As organizações costumavam ser hierárquicas e o trabalho repetitivo. Hoje, as organizações estão mais achatadas e os indivíduos assumem tarefas baseadas em projetos. No futuro, o trabalho será diferente em seu modo de ser alocado, vendido, avaliado, pago, intermediado, levado a termo e finalizado.
Em termos gerais, a uberização ocorre quando o trabalhador, destituído de vínculo formal com o empregador, oferece serviços por intermédio de plataformas digitais—em especial, aplicativos para celular. Assim como o Facebook é a rede social mais acessada sem produzir conteúdo algum, a Uber não é dona de frota alguma de carros: não contrata seus motoristas; ao contrário, coloca-se ela mesma como prestadora de serviço a esse trabalhador, oferecendo-lhe uma plataforma a partir da qual contatar passageiros e receber pagamentos.
A primeira conseqüência disso é que o trabalhador não tem vínculo formal; desde o ponto de vista prático, é evidente que trabalha para a Uber, mas a empresa, na condição formal de prestadora de serviço, exime-se de qualquer responsabilidade laboral. Assim, não há limite para o número de usuários: pode haver um número virtualmente infinito de motoristas e passageiros. A concorrência entre os motoristas, portanto, tende a se intensificar, o preço das corridas—sempre flutuante conforme horários e disponibilidade de carros—tende a ser achatado, e o número de horas trabalhadas se torna não flexível, mas simplesmente maior. Em crises de emprego como as que se vinha alargando no Brasil desde antes de se tornar epicentro da pandemia do novo coronavírus, não será apenas um complemento de renda, mas a principal ou única fonte de renda de uma classe média-baixa achatada.
Assim, nem todos são tão otimistas quanto Pennel; Sunny Freeman pesa prós e contras, e cita a opinião de Will Mitchell (Escola Rotman de Administração, Universidade de Toronto):
A Uber remove o intermediário—em seu caso, o expedidor de taxistas—da equação de compra e venda, permitindo que cada motorista seja seu próprio patrão, e trabalhe independentemente de uma empresa central, graças à magia da caixa preta da Internet. O clima trabalhista atual—com o afastamento do mercado de trabalho do emprego em moldes tradicionais rumo ao emprego de meio-expediente ou temporário, ao trabalho autônomo e a acordos alternativos de trabalho—de fato cria a receita perfeita para a uberização do trabalho. Pode ajudar tanto trabalhadores altamente qualificados, que não desejam se tornar empregados, ou que estão buscando um regime de trabalho mais flexível, bem como trabalhadores menos qualificados, que podem encontrar trabalhos de meio-expediente flexíveis quando lhes for conveniente.
Entretanto, a uberização da economia também pode exacerbar a desigualdade de renda, conforme nota Mitchell. Do lado da demanda, aqueles que podem pagar por serviços sairão vitoriosos. Em uma situação de clima extremo, o passageiro que pode pagar 100 vezes o preço normal do Uber leva a corrida, e quem não pode fica isolado. Do lado da oferta, aqueles que já têm posses—carros e casas, por exemplo—podem vender seus serviços muito mais facilmente do que aqueles que não têm.
Nessas pessoas providas de posses que podem trabalhar nesses moldes, reconheça-se a classe média-baixa rebaixada de que falei a pouco: as relações de trabalho não mudam apenas porque há tecnologia disponível, mas porque os trabalhadores são forçados a se adequar a essas mudanças, pelo achatamento de seus direitos e por ondas de desemprego. Discordo, porém, de Freeman em um aspecto importante: plataformas ao estilo da Uber não eliminam, mas substituem o intermediário, fragilizando as relações de trabalho ao fazê-lo. Parece-me ingênuo crer que haja sido eliminado, quando obviamente é por intermédio dos aplicativos e redes sociais que o trabalhador entra em contato com seus clientes em potencial.
A necessidade de acesso a veículos e Smartphones também ameaça o mito de “tornar-se o próprio patrão”. Os “despossuídos” de que fala Mitchell necessitam de acesso aos meios mínimos de produção para se autonomizar; estes trabalhadores estão, muitas vezes, usando de recursos conseguidos em uma outra situação econômica, quando seu enquadramento laboral era também distinto: o que acontece se você não dispõe mais de recursos para trocar de Smartphone ou comprar outro carro?
No caso da Uber, isso significa normalmente alugar um carro, mas pode significar coisas bem mais sombrias. O relato da relação entre Dani e o Comandante feito por Rodrigo Firmino e Bruno Cardoso para a revista Le Monde Diplomatique nos mostra uma jovem que, já trabalhando como motorista particular de um homem a quem chamava Comandante, atuava também como motorista de Uber, usando o veículo do empregador; o rendimento oriundo desse “bico” em horário de expediente ia inteiramente para o Comandante, que, assim, fazia com que a funcionária pagasse o próprio salário. Desassistida pela Uber e explorada pelo patrão, Dani é um exemplo claro de que, na nova ordem mundial do trabalho, mesmo a condição de explorado—que jamais poderia sequer ser considerada um direito—assume status de privilégio.
Ao invés do progresso normalmente associado ao uso e à constante renovação das tecnologias digitais, o sociólogo do trabalho Ricardo Antunes vê um grave retrocesso nas relações de trabalho que se vem constituindo a partir deste capitalismo de plataforma:
contrariamente ao que foi propugnado pela bibliografia apologética, que vislumbrou um novo mundo criativo no trabalho a partir do avanço técno-informal digital […], o que estamos presenciando e as pesquisas e estudos vêm sistematicamente confirmando é o seu exato inverso […]: em plena era do capitalismo de plataforma […] ampliam-se globalmente modalidades pretéritas de superexploração do trabalho que haviam sido obstadas pela luta operária desde as primeiras lutas e confrontações nos inícios da Revolução Industrial […]. Ou seja, em pleno século XXI, estamos presenciando o reencontro (esdrúxulo?) entre o capitalismo de plataforma com aquele praticado durante a protoforma do capitalismo.
Na entrevista recentemente concedida pelo sociólogo ao Digilabour, intitulada Trabalho uberizado e capitalismo virótico, Antunes também elenca diversas características dessas formas de trabalho—algumas das quais ecoam o que ficou dito acima—, que podem ser resumidas na lista a seguir:
- individualização do trabalhador;
- rarefação do trabalho assalariado e exclusão da legislação protetora do trabalho;
- controle e intensificação do tempo, do ritmo e do movimento da força de trabalho a partir do uso de “algoritmos”;
- jornadas diárias extenuantes de até 14h;
- constante retração da remuneração salarial;
- extinção unilateral de contratos pelas plataformas;
- forte espoliação ligada às despesas com equipamentos de trabalho, que passam a ser encargo do trabalhador.
A uberização é normalmente associada a serviços de transporte de mercadorias e passageiros, mas também se estende a vários outros tipos de serviços. Aplicativos como Get Ninjas, Workana (gerais para prestadores de serviços, incluindo tradutores e revisores) e Eduqi (especializado em professores particulares) funcionam em esquema semelhante, e com iguais conseqüências: desoneração patronal, acirramento da competitividade entre trabalhadores, achatamento de vencimentos, ampliação da jornada de trabalho.
As formas de lucro dos aplicativos sobre seus “não-funcionários” variam: o Get Ninjas vende “moedas” aos prestadores de serviço, e é necessário usá-las para poder responder a um pedido do cliente; o contratante que deseja, por exemplo, mandar pintar a casa ou desentupir a pia receberá três telefonemas de prestadores de serviços, que terão acesso a seu número por intermédio do aplicativo; essa pessoa ignora completamente o fato de que os três prestadores pagaram para poder falar com ele. Workana, como a Uber, cobra uma taxa sobre o valor acordado do serviço; o aplicativo não medeia de forma alguma entre os preços solicitados pelos contratantes e os valores normalmente praticados pelos profissionais; as pessoas buscando um dado serviço oferecem seus preços, não raro sem qualquer noção do quanto se cobra usualmente, e os prestadores, frente à competição massiva—é possível ver, no aplicativo, quantos profissionais já fizeram propostas ao contratante—, vê-se forçado a aceitar valores muito inferiores, e a fazer proposta sobre proposta, com constante preocupação em ser um dos primeiros a responder ao anúncio, até que seja, enfim, contratado para um serviço freelancer.
Plataformas como Workana e Get Ninjas podem abrigar tradutores, revisores e redatores profissionais. Mas há plataformas específicas para tradução, nas quais é possível não só aceitar encomendas, mas também traduzir; dentre estas, posso citar ainda o exemplo de plataformas como Proz e SmartCAT. Ambas as plataformas podem ser usadas gratuitamente; Proz é mais propriamente uma comunidade de tradutores, contando com fóruns de discussão e glossários construídos comunitariamente pelos tradutores interagindo por seu intermédio; também promove intermediação entre clientes e tradutores, e há tradutores que a defendem.
Concentro-me, contudo, no caso da SmartCAT, muito mais focada à tradução e à contratação de serviços de tradução e revisão. Esta plataforma oferece ferramentas de CAT e de geração de memórias de tradução e glossários integrados, para que o tradutor possa subir seus projetos individuais. Através dela, pode igualmente receber propostas de clientes, sendo convidado a trabalhar em projetos de tamanho variado; o pagamento pode contar com a intermediação da PayPal.
A pressão da uberização começa logo no cadastro; ao se cadastrar, o tradutor deverá informar suas tarifas pretendidas; a plataforma pode instrui-lo de que estão “altas” em relação à média, destarte forçando-o a baixá-las. Além disso, as encomendas não têm tamanho mínimo: é possível convidar o tradutor a traduzir duas palavras somente, sendo que o preço por palavra é, em média, US$0,015. Algumas encomendas—muitas vezes, com aspecto de informações para websites—não passam de listas de palavras isoladas, sem contexto que as identifique (embora seja, sim, possível ao tradutor contatar o cliente para esclarecimentos).
Finalmente, como no Workana, agilidade também é fundamental: o convite pode ser feito a inúmeros tradutores de uma vez, e será cancelado tão logo outro profissional o aceite, o que pode acontecer em questão de segundos. Assim, do tradutor exige-se constante atenção à plataforma, e uma pontualidade que excede os limites dos fusos horários.
Preso entre o discurso da solidariedade presente em grupos e comunidades formadas digitalmente e a pressão para crescente competição entre si, tradutoras e tradutores parecem ainda não contar com uma alternativa que lhes permita fazer frente a estas ameaças. Mais que a inteligência artificial, é a estrutura cambiante do mercado de trabalho que vem ameaçando a profissão; a solução não poderá ser individual. Deve ser coletiva; deve partir da classe, de forma consciente e esclarecida.