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Quero uma presidenta (I want a president), Zoe Leonard (1992)

Minha tradução do texto I Want a President, da artista plástica estadunidense Zoe Leonard.
Quero uma presidenta (I want a president), Zoe Leonard (1992)

A tradução nos aproxima tanto da realidade alheia, quanto da nossa. A mediação realizada pela tradução revela não somente o conteúdo e valores do texto de partida, mas principalmente as ênfases interpretativas da público de chegada.

Dada a largada em nosso processo eleitoral com a oficialização das candidaturas, deparo-me com a postagem do poema “I want a president”, da artista plástica Zoe Leonard, cuja tradução apresento abaixo. O verbete da Wikipédia sobre o poema apresenta o momento de publicação e a motivação do poema como seguem:

Zoe Leonard é uma artista, feminista e ativista radicada em Nova Iorque. Trabalha principalmente com fotografia e escultura, geralmente desenhadas para uma instalação. Boa parte de seu trabalho foi influenciado pela ou é uma reação à epidemia de AIDS das décadas de 1980 e 1990, e tópicos relacionados.

O poema “I want a president” foi inspirado pelo anúncio de que Eileen Myles, poetisa, ativista e amiga de Leonard, entraria na disputa presidencial estadunidense de 1992 como uma “candidata abertamente mulher”. Myles disputou independentemente contra George H. W. Bush, Bill Clinton e Ross Perot. Sua identidade—uma mulher lésbica, oriunda de uma comunidade diretamente afetada tanto pela pobreza quanto pela AIDS—contrastava com a de seus ricos oponentes masculinos.

O poema, ressuscitado pelas redes sociais brasileiras quase trinta anos após sua publicação original, provavelmente nos falará mais de nossa história e de nosso futuro que da história estadunidense. É importante, porém, ter em mente que nunca houve uma presidenta nos Estados Unidos, e apenas nas últimas eleições uma mulher assumiu a candidatura em um dos dois principais partidos; também é importante lembrar que, nos Estados Unidos, as candidaturas presidenciais por partidos pequenos são consideradas risíveis, absolutas perdas de tempo, quando não entraves ao processo eleitoral. (À candidata Gill Stein, do Partido Verde, por exemplo, perguntou-se em mais de uma entrevista, insistentemente, em quem votaria se não fosse candidata, e se não achava que sua candidatura roubaria votos de Hillary Clinton, aumentando assim as chances de Donald Trump ser eleito. Curiosamente, Stein também recorreu freqüentemente à expressão o menor dos dois males—da qual Leonard faz uso no poema—para se referir ao “voto útil” em Hillary.)



Quero uma presidenta sapatão. Quero uma presidenta soropositiva, e quero uma bicha na vice-presidência, e quero alguém que não tem plano de saúde, e quero alguém que cresceu numa terra tão entumecida de lixo tóxico que não tinha como não contrair leucemia. Quero uma presidenta que abortou aos dezesseis, e quero uma candidata que não seja o menor dos dois males, e quero uma presidenta que perdeu seu último amor para a AIDS, que segurou nos braços alguém que amava e que sabia que estava morrendo, que ainda vê a cena diante de si cada vez que fecha os olhos à noite. Quero uma presidenta que não tem ar-condicionado, uma presidenta que pegou fila na clínica, no departamento de trânsito, no escritório da seguridade social, e que ficou desempregada e foi demitida e sexualmente assediada e agredida por ser gay e deportada. Quero alguém que passou a noite na cadeia e em cujo gramado fincaram uma cruz em chamas e que sobreviveu ao estupro. Quero alguém que se apaixonou e foi magoada, que respeita o sexo, que cometeu erros e aprendeu com eles. Quero uma presidenta negra. Quero alguém com dentes estragados e durona, alguém que comeu a comida horrível dos hospitais, alguém que se veste com roupas do outro sexo e que usou drogas e fez terapia. Quero alguém que cometeu desobediência civil. E quero saber porque isso não é possível. E quero saber porque passamos a aprender que o presidente é sempre um palhaço: sempre o cliente e nunca a prostituta. Sempre um patrão e nunca um empregado, sempre um mentiroso, sempre um ladrão e nunca pego.

«Quero uma presidenta…». Zoe Leonard. 1992.


Alguns apontamentos sobre a tradução

A primeiríssima sentença do poema não só nos leva de volta ao contexto acima explicitado, mas também nos projeta ao primeiro problema tradutório: I want a dyke for president apresenta um percalço preposicional; em inglês, para se falar que alguém é candidato à presidência, diz-se Eyleen Myles is running for president; dado o momento e o caráter eminentemente político do poema—que deseja comentar uma situação imediata, e intervir nela—, Leonard deseja, estritamente falando, um candidata sapatão à presidência. Tamanha é a força o bipartidarismo estadunidense que uma candidata mulher concorrendo por um dos partidecos que não adquiriram direito divino à cadeira presidencial parecerá impossível—veja-se o final do poema—, mesmo após sua candidatura ser oficializada. Esta situação, como comentei acima, perdura até hoje.

Em tradução, quero uma candidata sapatão à presidência seria a opção mais correta, mas demasiadamente longa, e arruinaria o efeito da sentença; quero uma candidata sapatão seria pragmaticamente possível (o texto deixa claro alhures de que cargo está falando), mas sem um equivalente direto para president, perde algo de sua força; assim, uma frase que expresse um desejo mais forte—um candidata que não só concorra, mas vença as eleições—pareceu a melhor escolha. Esta solução é também abonada pelo título do poema, e mais abaixo no próprio texto (I want a president that had an abortion…).

A tradução, tal como já apontava Roman Jakobson, contrasta as ênfases das diferentes línguas. A morfologia do inglês é pobre em flexões de gênero; salvo uns poucos pares (host/hostess, sorcerer/sorceress, widow/widower), não há marcação de gênero para os substantivos, e os dois únicos artigos da língua (the, a) não têm marcação de gênero. A morfologia inflexional do português obriga, por sua vez, a uma escolha, e elimina a oscilação—o que gera alguns problemas de tradução.

Primeiramente, apesar de o contexto original de produção e circulação do poema, bem como sua frase de abertura, enfatizarem que se trata de uma presidenta, não é exatamente verdade que as identidades de gênero ou raça desta figura se mantenham uniformes ao longo de toda a descrição; por se tratar de algo hipotético, o gênero se torna mais relevante em alguns momentos, talvez menos em outros; do mesmo modo, a raça, evidenciada mais adiante de maneira direta (I want a Black woman for president) e indireta (I want someone who […] had a cross burned on their lawn), não se manifesta nas primeiras linhas. A sensação geral é de uma sobrecarga de desejos concorrentes, não necessariamente conflitantes, mas impossíveis de serem realizados todos ao mesmo tempo; a premência desses grupos minoritários a voz e poder fica, assim, desesperadamente evidente.

As primeiras sentenças do poema evidenciam bem essa fluidez de identidades, calcada numa urgência de desejos: o contexto original do poema me fez optar pelo feminino presidenta. Esta solução, porém, esbarra imediatamente na segunda sentença, que pede a person with aids. O contexto da disseminação do HIV nos anos 1980 e 1990 dentro da comunidade LGBT talvez levasse a crer que o president da segunda sentença é um homem, não mulher. É importante lembrar que, no início da epidemia, homossexuais masculinos eram mais fortemente associados à doença que heterossexuais ou lésbicas (o primeiro caso de transmissão do vírus entre lésbicas foi reportado somente vinte e dois anos depois da publicação do poema). Embora o poema nesse passo peça “uma pessoa”, migrando do feminino para o neutro—talvez para dissociar a epidemia de HIV da comunidade LGBT e evitar o tratamento da AIDS como uma “praga gay” —, essa “pessoa” encontra-se no meio de duas especificações de gênero e orientação sexual (dyke e fag), o que talvez dificulte a dissociação. Mesmo assim, o movimento entre sexos biológicos e orientações de gênero evidencia como a ausência de marcações morfológicas de gênero do inglês favorece construções mais ambíguas, que migrem do feminino ao neutro e ao masculino sem esforço.

Aproveitando o ensejo, esclareço que a locução with aids foi vertida por soropositiva (ao invés de que tem aids) na primeira ocorrência do termo. Os tempos mudam, e também a fala. Nos anos 1990, talvez ainda houvesse certa confusão entre alguém que desenvolveu AIDS e um portador do vírus HIV; na primeira ocorrência de aids no poema, creio que a artista se referia a um(a) portador(a), e a tradução reflete isso; na segunda, trata-se de fato de alguém que desenvolveu a doença, e portanto a tradução mantém a sigla.

Um segundo problema oriundo das distintas morfologias do inglês e do português tem a ver com a escolha dos modos verbais. O inglês eliminou quase inteiramente a diferença morfológica entre o indicativo e o subjuntivo—entre afirmar algo e apenas mencioná-lo—; no português, esta diferença se mantém um tanto mais firme, ainda que o subjuntivo pareça se recolher mais e mais à escrita.

Assim, sentenças como I want someone with no health insurance e I want a president that had an abortion at sixteen seriam traduzidas por quero alguém que não tenha plano de saúde e quero alguém que tenha abortado/feito um aborto aos dezesseis. A força das imagens seria abrandada pelo subjuntivo; ademais, o uso da perífrase verbal alonga incomodamente as sentenças. Pareceu-me mais consoante ao ativismo do poema traduzir para o indicativo: não soa estranho (afinal, o subjuntivo do português está desaparecendo), e confere força às afirmações. Mesmo assim, é importante lembrar que a irrealidade mesma destes desejos é expressamente manifesta ao final do poema (And I want to know why this isn’t possible): embora isso talvez abonasse o uso do subjuntivo, o efeito geral é de contraste, e isso seria melhor garantido sem o uso recorrente do subjuntivo.

Finalmente, a expressão the tombs (apelido do Manhattan Detention Complex e, antes dele, de outros complexos prisionais em Nova Iorque) foi traduzida pelo hiperônimo “cadeia”.