Tradução como favor
Todo professor de inglês, ao se apresentar como tal em ocasiões informais, já deve haver escutado piadinhas do tipo “quem sabe então você não me dá umas aulinhas”. Como toda brincadeira sempre esconde um fundo de verdade, o que vemos aqui reflete o baixo prestígio associado à docência e ao ensino de línguas estrangeiras.
A idéia de que é possível ensinar línguas como favor—corroborada pelo diminutivo aulinhas, ou seja, algo simples, que não dá muito trabalho nem custa muito—também parece contaminar outras profissões relacionadas a idiomas estrangeiros, como a tradução.
Para um leigo apressado, a tradução de um resumo ou abstract pode parecer algo tão rápido e simples que não custaria nada pedi-la como favor a um amigo; eu mesmo—quando não estava mais integralmente dedicado à tradução, mas já as praticava a custo—já me vi, meio a contragosto, auxiliando um colega professor de inglês a traduzir um resumo para seu colega de quarto.
Existem alguns problemas na concepção da tradução como favor, e gostaria de “desabafá-los” abaixo:
- Em primeiro lugar pode haver problemas para o solicitante. A tradução é uma tarefa especializada, que requer, para além de um domínio avançado das línguas fonte e meta, e algum grau de experiência ou treinamento. Tradutores inexperientes ou ainda não muito seguros no domínio de uma das línguas tendem a decalcar, ou seja, emprestarem estruturas da língua-fonte, sem compreenderem que existem correlatos mais fluidos e escorreitos na língua-meta.
- O risco de uma tradução problemática e ainda maior se se tratar de uma versão—ou seja, de uma tradução para uma língua estrangeira. Os decalques e problemas podem ser ainda maiores e mais graves, interferindo na inteligibilidade e na correção terminológica do texto.
- Por falar em correção terminológica, o tradutor é um determinado tipo de especialista em produção textual; nenhum tradutor de textos escritos tem obrigação de conhecer os termos e conceitos de determinada área de conhecimento antes de iniciar seu trabalho; todo trabalho sério de tradução requer habilidade na busca e seleção terminológica, e isso toma tempo e requer alguma prática. Isso é válido mesmo para um tradutor especializado em determinada área do conhecimento ou profissional.
- Finalmente, essa ajuda redunda numa injustiça. Ao fazer de graça uma tarefa que faz parte do metiê de terceiros, não estamos apenas ajudando um amigo ou colega, mas igualmente prejudicando uma classe de profissionais. Toda tradução realizada gratuitamente, por menor que seja, é uma oportunidade de trabalho que foi retirada de um tradutor profissional—de alguém que depende disso para sobreviver. (A única exceção concebível seria a tradução humanitária: aquela realizada para pessoas em condição de pobreza a miséria, que dela dependam de alguma maneira, embora se vejam impossibilitadas de arcar com os custos, ou realizada em prol de causas sociais ou ambientais. Quando nos pedem traduções de resumos, dificilmente seria esse o caso.)
- Mas não é justo que as pessoas paguem para trabalhar; não é justo que alguém escrevendo um resumo como parte de suas tarefas de pós-graduação ou de seu exercício profissional tenha que arcar com custos laborais. De fato, não é. Mas é necessário pesar as injustiças: quem está em condição mais fragilizada? Um assalariado ou bolsista está numa condição mais favorável (mesmo que temporariamente) do um freelancer, cujos rendimentos são sempre flutuantes e incertos. É importante lembrar que, se você realiza traduções, então esta pode vir a ser para você uma opção econômica em algum momento; transformar um potencial trabalho em favor é atuar em prejuízo próprio.
Se você realmente deseja realizar traduções como um préstimo, uma sugestão que faço é a seguinte: cobre um valor simbólico, e faça doações desses valores a instituições de sua confiança. Deste modo, estará lembrando a seus colegas de que a tradução é um serviço realizado por profissionais, e ao mesmo tempo oferecendo algo a quem realmente tem precisão.