Traduções traiçoeiras: um tuíte de Kanye West
O rapper estadunidense Kanye West, em uma seqüência de tuítes recentes, retirou seu endosso ao presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. Recentemente, Caitlyn Jenner declarou arrependimento por seu apoio a Trump, após o ataque da Casa Branca a leis garantindo direitos à comunidade transexual.
Seguramente, o principal interesse destes episódios está na natureza do racismo e da lgbtfobia: por que representantes de grupos considerados “minoritários” (desde o ponto de vista sócio-econômico, já que, numericamente, alguns destes grupos constituem maiorias) endossam o discurso de seus detratores—a ponto inclusive de se engajarem politicamente em suas campanhas, fazendo uso de sua persona pública, e recebendo fortes críticas das comunidades afetadas—? (Ou, posto de outro modo: como figuras públicas que endossam posturas marcadamente preconceituosas usam a imagem dos grupos aos quais atacam para se defender das críticas?) Adicionalmente, haverá dúvidas quanto à sinceridade dos eventuais arrependimentos, e oscilação quanto ao tipo de reação que receberão dos grupos afetados—desde o mais derrisório “eu avisei!” até o perdão e as sinceras boas-vindas.
O que me leva a comentar este episódio, no entanto, é uma valiosa (embora lateral) lição sobre as complicações da tradução. O tuíte tradutoriamente controverso é o seguinte:
O subtítulo da reportagem publicada pela UOL traduz o I’ve been used ali presente por “fui usado”; no entanto, no corpo do texto, o tuíte é traduzido integralmente como segue:
Meus olhos agora estão bem abertos e percebo que me acostumei a espalhar mensagens que não acredito. Estou me distanciando da política e me focando completamente em ser artisticamente criativo.
Vejam que I’ve been used foi traduzido, na mesma reportagem, como “me acostumei” e “fui usado”. Qual a tradução correta?
De fato, to be used to tanto pode significar “estar acostumado a” quanto ser a construção passiva de “usar” (to use / to be used). À primeira vista, há uma ambigüidade sintática. Em segundo lugar, desde o ponto de vista pragmático, se West endossou Trump por tanto tempo, então disseminou “mensagens [em] que não acredita” de forma contínua; não seria descabido pensar que se acostumou a essa prática. O uso do perfectivo—uma dor de cabeça constante para aprendizes e, às vezes, também para tradutores—também pode haver contribuído para a confusão, embora, nesse caso, ambas as traduções hajam vertido o present perfect como pretérito perfeito (ver nota abaixo).
A tradução correta, em meu entendimento, é a do título. Sintaticamente, to be used to (no sentido de “estar acostumado a”) requer que o verbo a seguir seja substantivado; em inglês, a forma substantiva dos verbos não é o infinitivo, mas o gerúndio. Se West houvesse escrito I’ve been used to spreading, estaria falando de se haver acostumado; o infinitivo spread indica, todavia, que o verbo principal é to use, não to be used to. West se declara usado, não acostumado.
Esta cautionary tale sobre os perigos da tradução indica que mesmo um tradutor competente poderá cometer deslizes de quando em vez. Os prazos apertados andam de mãos dadas com algumas armadilhas e ambigüidades presentes nos textos, fazendo com que mesmo tradutores experientes se deixem levar.
Ademais, não se trata de um erro crasso: o tradutor não caiu na armadilha do tempo verbal (cf nota abaixo), essa sim um erro mais comumente associado a estudantes e tradutores iniciantes. Trata-se de fazer escolhas cuja decisão final se encontra em detalhes facilmente negligenciáveis.
Nota: tempos verbais em inglês e português
A escolha de verter o present perfect para o pretérito perfeito é correta; desde o ponto de vista estritamente cronológico, o present perfect é idêntico ao simple past; sua diferença diz respeito ao aspecto: o present perfect, ao ser usado, gera uma conexão inferencial entre o evento descrito e o momento presente. Ao usar o present perfect, indicamos não que o evento “continua até o presente”, como se costuma dizer, mas sim que o evento tem relevância presente; qual relevância seja essa é contextual—daí a dificuldade em reconhecermos sua função, já que essa relevância não possui, em português, marcação morfológica.
A coisa se complica ainda mais porque a perífrase verbal estruturalmente idêntica ao present perfect em português (ou seja: a junção do verbo ter no presente do indicativo a um verbo principal no particípio passado) tem, sim, a função de indicar que um estado de coisas continua até o presente: em português, tenho usado é semanticamente idêntico a venho usando, ambas as perífrases indicando que iniciei o uso de algo no passado, e esse uso continua até o presente; ambas seriam mais adequadamente vertidas pelo present perfect continuous: I have been using.