da literatura em miniatura: lendo textos extremamente breves

da literatura em miniatura: lendo textos extremamente breves
Photo by Shanthi Raja / Unsplash

Um amigo acaba de me enviar um miniconto da escritora Lygia Fagundes Telles, recolhido no recém-lançado Os cem melhores contos brasileiros do século:

– Fui me confessar ao mar.
– E o que ele disse?
– Nada.

Talvez o texto, menor que um haicai, suscite um certo estranhamento. Como assim, conto? E ainda entre os melhores já escritos?

A literatura extremamente sucinta talvez nos espante. Um épico ou romance podem nos parecer colossais por seu puro tamanho, um soneto pode ser magistral, pode nos comover por suas confissões ou impressionar por suas piruetas rítmicas ou rimáticas, mas o que há de tão bom ou tão poético em dizer:

A chuva mostra
o pensamento
triste
da nuvem
(Fernando Paixão, Sentimento. In: Porcelana invisível. São Paulo: Cosac Naify, 2015, p. 98)

ou

a missa
a miss
o míssil
(José Paulo Pais. Ocidental. In: Poesia completa. São Paulo: Cia das Letras, 2008, p.170)

ou ainda, mais radicalmente

ninguém.
(José Luis Peixoto. In: A criança em ruínas. Porto Alegre: Dublinense, 2017, p. 28)

A simplicidade e a extrema brevidades não oferecem muito com que se trabalhar; o poema de Paixão parecerá não mais que uma símile (chorar é como chover), o de Paes um trocadilho ortográfico sem sentido, e o de Peixoto, composto por uma única palavra, superavitário em déficits, talvez em criatividade. Não é impossível que, ao lê-los, ocorra-nos: e daí?

Textos pequenos, porém, podem nos ensinar muito sobre a profundidade necessária não para se escrever poesia (ou prosa, nosso objeto é classificado como prosa), mas para lê-la. Analisemos, então, o minoconto de Lygia Fagundes Telles; comecemos por sua profundidade vertical, digamos, depois passemos a outra, que nada impede chamemos horizontal.

A profundidade vertical: lendo o texto

O miniconto se apresenta como diálogo puro, ou seja, tão breve, que parece carecer até de narrador; a primeira fala o abre com uma meta-confissão: alguém confessa ou confidencia a outra pessoa (um amigo?) que foi se confessar ao mar. Aqui, os elementos centrais são, obviamente, o verbo confessar e o substantivo mar. A confissão é um ato verbal, que consiste em revelar segredos; o que se confessa é, precisamente (e não sem ironia) o inconfessável. Confessar-se é fazer profissão pública de culpa ou vergonha. Em seu sentido mais formal, a confissão é um dos sacramentos basilares do Catolicismo: confessar-se é expurgar pecados por meio de sua admissão a um oficial religioso, com autoridade absolutiva. Confessar “limpa” ou “purifica” o pecador.

O segundo item oferece a primeira quebra com potencial simbólico do texto. A confissão não é feita a um confessor, nem mesmo a uma entidade que tenha faculdades mentais, mas ao mar. O mar é um corpo d’água gigantesco; como tal, também pode limpar ou purificar, mas de modo imperfeito: lavamo-nos mais costumeiramente em água doce, a salgada sendo usada somente se não houver melhor opção (e.g. retirar o excesso de areia das chinelas antes de sair da praia). Assim, o mar seria duplamente desqualificado como receptor da confissão: não absolve nem limpa. Daí o caráter confessional de admitir tal confissão: confessei-me a um ente não-confessional; engajei-me num ato estranho, que demanda maiores esclarecimentos.

O interlocutor promove uma segunda quebra: ao perguntar o que disse o mar, i.e. o que respondeu às coisas que ouviu, trata-o como ente antropomórfico, em condições de oferecer conforto ou conselho. Descortina-se diante do leitor a possibilidade de que o conto se passe num mundo ficcional onde o mar, de fato, fala e ouve. Onde o mar—titânico e ancião—é sábio e conselheiro. Diante de um tal mundo, o interlocutor demonstra o desejo de conhecer os desdobramentos de uma tal experiência.

A resposta, propositadamente ambígua, não se resolve a endossar ou despedir essa possibilidade. Nada se mantém no limiar entre um pronome cujo referente é “nenhuma das coisas que existem” e o imperativo do verbo nadar. Quem é deixado com nada, quem é esvaziado de suas expectativas, mais que o ouvinte dentro do conto, é o leitor. Não saberá, nem saberemos o que disse o mar, nem mesmo se disse. Não sabemos em que mundo se passa o pequeno diálogo.

A ausência de resolução pode reforçar as estranhezas da primeira fala ou da segunda; alinhando-se à primeira, o mar se mostra novamente como confessor inadequado: obviamente, não diria nada, já que não fala. Ao ato de confessar-se, falta o elemento que o completaria: a reação de quem o escuta. É um ato feito por si mesmo, sem propósitos, portanto sem necessariamente dolo ou culpa. É um solilóquio, um gesto de alguém para consigo, que permanece fechado para quem o escuta: ouvinte e leitor não saberão o que disse, nem porque, nem que importância poderia ter. Nem a confissão nem a meta-confissão confessam.

Por outro lado, se a ausência se alia à segunda fala, esse mar não se mostra um confessor ou conselheiro sábio ou ponderado, mas simplório, talvez infantil. Diz a única coisa que saberia dizer: independentemente do que haja escutado, sua única resposta é que, diante dum corpo d’água tal como é, não resta a fazer senão nadar. Nadar, porém, como verbo de locomoção, lembra-nos de uma das símiles mais antigas e prolíferas da diegese humana: a vida é como uma viagem. E o mar é o pior caminho de todos, especialmente se cruzado a nado: é um caminho sem estradas, uma jornada sem rotas. Diante dos inconfessáveis da vida—estes mesmos que, no absurdo da existência, confessamos—, resta seguir adiante, mergulhar de cabeça, nada mais. Não há sabedoria, apenas persistência.

O que une ambas as versões seria a atitude de quem confessa sua confissão: sua fala final, que, limitando-se a dizer nada, não diz praticamente nada, pode ser lida, num caso ou noutro, como aceitação; não há raiva, não há frustração, não há desconsolo, tampouco alegria. Nenhuma reação se lê onde quase nenhuma palavra se escreve: cabe-lhe aceitar o que o mar (não) lhe disse.

Assim, como se vê, por sua simplicidade mesma, por sua brevidade lacunar, o conto se abre em dois: um sobre a vacuidade de nossos gestos comunicativos (o confessar como não confessar, o dizer como silenciar), outro sobre a inevitabilidade de persistir vivendo diante dos impasses, dos erros, das falhas, das culpas. E sobre que atitude tomar diante de cada uma dessas possibilidades.

A profundidade horizontal: lendo além do texto

O ato da leitura atenta pode enriquecer um texto a partir de suas próprias riquezas; aprofundarmo-nos nas palavras que compõem uma obra nos auxilia a compreender como a escassez pode ser uma estratégia produtiva. Mas existe também uma leitura que enriquece o texto daquilo que lhe é externo, que lhe está ao lado—daí ser horizontal—: um texto, mesmo minúsculo, espraia-se pela memória e nos convida a revisitar contrastivamente outros textos que, como leitores, já visitamos.

A idéia da vida como viagem sugerida pelo imperativo nada (ou por nada lido como imperativo) me lembra de alguns veleiros presentes no último livro de Adalgisa Nery, cuja poesia completa também foi recentemente publicada:

O veleiro é o mesmo
O horizonte é outro, mais infinito,
O oceano se repete na variação
Entre a fúria e a placidez.
(Tripulantes do veleiro. In: Do fim ao princípio: poesia completa. Rio de Janeiro: José Olympio, 2023, p. 32)
O que há além dos veleiros perdidos nos silêncio das esperar,
Além do azul parado atrás do horizonte?
(O desvendado, p 35)

É Adalgisa quem me ensina essa variante estranha do tropo: o mar é um caminho sem rotas, pura repetição, onde seguimos perdidos.

Assim como a vida como viagem é um tropo literário recorrente, não menos comum é o tropo de projetar estados de espírito internos em seres externos, animados ou não. Seja o búfalo do conto de Clarice ou a marca na parede de Virginia Woolf, falar sobre o externo diz-nos mais sobre quem fala do que sobre o objeto. Confessar ao mar para receber nada como resposta pode ser um semelhante ato de projeção; lembra-me um ditado (não consigo recuperar sua fonte, creio que seja Cherokee): Vá falar às árvores, pois nunca dão maus conselhos. Quem não fala, não diz bobagem, obviamente. Organizarmo-nos internamente depende de nossa sinceridade e capacidade reflexiva, não de interlocutores internos. Em uma de suas versões, o mar de Lygia parece oferecer uma variação do tema desse ditado: seu mar não seria verdadeiramente um ouvinte, mas peça-chave de um ambiente que permite distanciamento e atitude contemplativa.

Em sua segunda versão, esse mar infantil, bitolado, que manda nadar a quem o aborda com problemas ou lamúrias (talvez mesmo prazeres ou felicidades, pois a algumas também não se as confessa) pode ser encarado como um tolo, um mal-humorado ou, ao contrário do que disse acima, um confessor qualificadíssimo, sincero, que nos oferece o que tem de melhor. Digo isso porque me lembra de um conto (outra referência que necessito reencontrar) de uma escritora mineira chamada Maria Lysia Corrêa de Araújo, recolhido em Em silêncio (1978): um homem parado junto a uma árvore, com os bolsos cheios de folhas, oferece-as a quem quer que o aborde; aproxima-se-lhe enfim uma cabra, desculpando-se pela demora; o homem lhe oferece as folhas, e a cabra as come, satisfeita. Ninguém senão a cabra compreenderia o gesto de amor singular (no sentidos de “peculiar” e “único”) desse homem. Esse mar não seria um pouco assim, oferecendo seu amor a quem o procura em confissão da melhor, da única forma que saberia? Não é bonito que alguém ofereça de modo amoroso a única coisa que sabe, mesmo sendo absolutamente inadequada ou inútil?

Finalmente, como todo texto literário é um metatexto (eis aqui uma terceira idéia cuja fonte me esvazia por hora), o conto de Lygia talvez nos tenha a dizer sobre o que significa escrever contos, e sobre a importância da brevidade (para determinadas estéticas ao menos); Ernest Hemingway fez escola com seu estilo contido e contado de narrar. Conta-se que, certa feita, ganhara uma aposta ao produzir um conto com apenas seis palavras:

For sale: baby shoes, never worn.
(Vende-se: sapatinhos de bebê, nunca usados.)

A estória pende para o apócrifo; não obstante, o miniconto não deixa de ser comovente de um modo que outro maior jamais seria.

Traduzindo miniaturas

Um último argumento que poderia lançar em defesa de um olhar mais atento e benévolo à literatura microscópica, e com o qual me despeço, vem da tradução. De minha experiência, posso afirmar que traduzir uma quadra é pior que traduzir um soneto. Tudo é muito fechado, preciso, importante; não há espaço para realocar, para subtrair redundâncias ou acrescentar informações. A quadra é uma camisa de força tradutória, e um excelente exemplo de que menos, às vezes, de fato, é mais, infinitamente mais.