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De Nana a Madonna: recepção estética e engajamento político na era digital

De Nana a Madonna: recepção estética e engajamento político na era digital

A 14 de maio de 2019, notificou-se a decisão da cantora Madonna de manter sua performances durante o Eurovision Song Contest deste ano. A participação da cantora, em divulgação do novo disco, foi alvo de protestos por parte dos defensores dos direitos humanos, que acusam o Estado de Israel de promover o genocídio do povo palestino, encobrindo semelhantes violações com ações culturais, tais como sediar a Eurovision e a Parada Gay de Tel Aviv. (No caso da parada, cunhou-se o termo pinkwashing, que significa “promover uma atitude de respeito à população LGBTQI+ para dissimular outras formas de violação aos direitos humanos”.) Recorrentemente, artistas são instados por colegas de profissão a cancelarem shows em Israel por este motivo; um semelhante incidente ocorreu quando, em 2015, Rogers Waters instou Caetano Veloso e Gilberto Gil a cancelarem um show em Tel Aviv.

Assim, embora afirmando sua defesa dos direitos humanos, Madonna declarou: I’ll never stop playing music to suit someone’s political agenda [jamais deixarei de cantar para me adequar aos interesses políticos de outrem]. (Durante a campanha presidencial no Brasil em 2018, Madonna de fato foi uma das celebridades internacionais a aderir ao movimento #elenão, com uma story publicada em seu Instagram. Que seja de meu conhecimento, porém, nunca se pronunciou publicamente quanto à situação da Palestina; chamar essa luta de “interesses políticos” também me parece demonstrar certa incompreensão da questão.)

No Brasil, um pouco antes, a 28 de março, a intérprete Nana Caymmi juntou-se ao pouco honroso grupo dos artistas defensores de visões rejeitadas pela maior parte da classe artística. Em antipática entrevista concedida à Folha de São Paulo, fez pouco da “baixa” cultura, ofendeu colegas de profissão, atacou parentes e demonstrou o senso político dos que julgam que a lucidez reside na grosseria. A entrevista deveria chamar atenção a seu disco, a ser brevemente lançado, mas talvez haja afugentado potenciais ouvintes, e mesmo fãs de longa data.

Não são casos isolados. As opiniões políticas de celebridades não raro surpreendem; em alguns casos, a maturidade chega ao ponto de rasgar os compromissos da juventude: Ferreira Gullar morreu abraçado ao espectro conservador; músicos como Lobão e Roger Moreira há muito são vozes ativas do conservadorismo; ano passado, o compositor Geraldo Vandré—autor de “Pra não dizer que não falei de flores”, uma das canções-símbolo da resistência contra a ditadura militar—, surpreendeu ao endossar uma visão que contradiz a própria obra; em dezembro, Djavan seguiu semelhante rumo.

Em meio às “divas” da comunidade LGBTQI+, nomes como Anitta, Jojo Todynho e Valesca são alvo de desconfiança por seus posicionamentos—a neutralidade e reticência da primeira quando conclamada a se juntar ao movimento #elenão, comentários preconceituosos da segunda, que buscava se aproximar da comunidade como nicho de mercado, e o apoio da terceira, por meio de stories no Instagram, a uma sub-celebridade declaradamente homossexual com propensões conservadoras.

Fenômeno não dissímil ocorre em Hollywood. As multicores acusações contra Harvey Weinstein geraram o movimento #metoo e uma purga na indústria cinematográfica; as atrizes passaram não somente a endossar a campanha por pagamento igualitário, mas também a denunciar colegas homens em cujas mãos sofreram abuso, ou que simplesmente permitiram que fossem abusadas sem tomar providências.

Esse tipo de polêmica—como ficou claro no caso de Madonna—vem instantaneamente acompanhada por pedidos de boicotes: não se assista quem assedia, não se contrate quem agride, não se ouça quem tergiversa, não se leia quem apóia, não se apresente com genocidas. Os artistas parecem temer este tipo de publicidade negativa; verdade que alguns gostam de polêmicas, mas pode haver uma diferença entre polêmicas calculadas como estratégias de marketing e polêmicas que fogem a seu controle consciente e apostas empresariais: Anitta capitalizou sobre a polêmica proposital de seu “Vai Malandra”, por exemplo, mas não soube muito bem lidar com ser conclamada a se posicionar politicamente. Mesmo assim, o férvido sangue digital que pede boicotes desconsidera inúmeros prós e contras.

Não é minha intenção oferecer um veredito—tarefa arriscada em uma época que midiatizou (ou midiotizou) mesmo a atividade do Judiciário—, e sim descrever um panorama; não me interessam os artistas, mas seu público: como e porque reage de tal ou qual forma, e como escolher qual caminho de ação tomar para coadunar apreciação estética e bandeiras políticas.

Horizonte interpretativo na era digital

A tônica da recepção estética do século XXI se dá pelas vias do engajamento digital, em especial o de ordem ética e política: diga-me com quem andas e direi se gosto de tua arte. Não é a arte, contudo, que necessita ser engajada, são os artistas; nesse contexto, defender a obra de artistas até então sérios e respeitados—mesmo que discordemos de seus posicionamentos e atitudes em outros campos—pode ser arriscado.

Se, por um lado, nenhuma forma de recepção é inteiramente racional, se não há objetividade absoluta em nossos julgamentos estéticos, tampouco devemos desconsiderar a força e a legitimidade dos critérios que orientam a recepção de um determinado período. Não devemos minorar a relevância dos ambientes de recepção, embora possamos, com o devido distanciamento, observar bem a arbitrariedade de cada uma das formas de se ler o mesmo autor. Na Inglaterra do século XVII, a obra de John Donne circulou em manuscrito, pois seus leitores de elite consideravam a publicação em volume impresso coisa de autores “populares”; no Brasil, a recepção de Donne, iniciada no século XX, esteve mais bem ligada às contendas acerca da tradução, e sua recepção se deu pelo viés das teorias literárias e tradutórias rivais; o Donne que gorjeia aqui não gorjeia como o de lá. Tão arbitrário quanto vincular bom-gosto à prensa é subsumir a leitura de um autor a uma discussão teórica, mas ambas as abordagens ao poeta constituem, hoje, indelével (e portanto legítima) parte do que significa ler John Donne.

Em nosso contexto atual, a atitude estética engajada coleciona uma amarga amálgama de fatores. Em primeiro lugar, o funcionamento típico dos meios digitais: a veloz propagação de informações, associada à velocíssima produção de conteúdo a respeito—textos de veículos respeitados, opiniões em mídias sociais, vídeos, paródias e memes—, popularmente conhecida como viralização. Em segundo lugar, o quadro sócio-político-histórico que gera os conteúdos assim produzidos e reverberados: o constante enfrentamento entre os campos ideológicos mais progressivas e os mais conservadores, o agravamento da crise político-econômica, o aumento da violência—tanto policial quanto criminosa—contra grupos considerados minoritários, o acirramento dos ânimos, o adoecimento coletivo.

Em meio a esse quadro, existe uma justificativa para não se ouvir ou ler ou assistir artistas cujas opiniões sobre ética e política nos parecem equivocadas. Nunca antes nossa recepção individual foi tão pública, tão registrada e tão contabilizável como na era da web 2.0. O ouvinte solitário de um disco, o leitor de um livro impresso não deixam rastro de seu processo; o ouvinte e o leitor digitais, por sua vez, deixam pós si registro do que leram, ouviram e assistiram, responsável por alimentar bancos de dados que organizarão de que modo novas informações lhes serão apresentadas e dispostas: listas de artistas semelhantes, listas de pessoas que, como ele, “curtem” os mesmos artefatos, sugestões de consumo, organização automatizada de seqüências de vídeos e músicas. A recepção, transformada em dado, afeta a distribuição dos demais dados na rede de computadores, dando ou removendo destaque a tal ou qual conteúdo e a seus criadores.

Mesmo que a obra de arte em questão não seja particularmente política, ouvi-la é um ato político, direta ou indiretamente. Assistir uma performance que fura um pedido internacional de boicote, lotar os concertos daquele cantor acusado de agredir a esposa significa aumentar sua relevância, aumentar o espaço que tem para se manifestar; conseqüentemente, aumentar o peso de sua opinião e o tamanho do público que terá acesso a ela. Eis, segundo creio, o mecanismo por trás de tantas ondas de boicotes a artistas: sufocar-lhes o potencial de endosso a idéias e opiniões conservadoras—que, para um público engajado, significam nada menos que a morte de diversos grupos humanos: negros, mulheres, a classe trabalhadora, os aposentados, os imigrantes, a comunidade LGBTQI+, etc.

Descaminhos do boicote

Os boicotes podem parecer pesadamente eficazes: Anita Bryant, cantora e ativista conservadora estadunidense, era garota-propaganda de uma marca de suco de laranjas no final dos anos 1970, mas seu apoio ao movimento Save Our Children—que foi bem-sucedido em barrar leis anti-discriminação por orientação sexual em 1977—, levou a um boicote ao suco que abalou sua carreira. Pouco depois, divorciada, foi boicotada pelos próprios apoiadores religiosos, cujos valores fundamentalistas se opunham ao divórcio. Sua carreira musical não se recuperou inteiramente; atualmente, Anita se mantém longe do ativismo conservador.

Mais recentemente, na era do boicote promovido digitalmente, anunciou-se que o cantor sertanejo Eduardo Costa vem experimentando uma queda brusca no número mensal de apresentações após a viralização de opiniões conservadoras. No campo dos influenciadores digitais, um dos principais youtubers de direita, Nando Moura, teve seu canal “desmonetizado” pela plataforma após denúncias de propagação de discurso de ódio e notícias falsas.

Mesmo assim, os dados às vezes se desencontram: no nível empresarial, embora se reporte com certo gosto o malogro financeiro das Lojas Marisa—alvo de críticas por fazer troça com a finada ex-primeira-dama, Marisa Letícia—, reporta-se igualmente o lucro exorbitante que a Havan—cujo presidente foi flagrado coagindo funcionários no período eleitoral—obteve em 2018; em nenhum dos dois casos, a relação do sucesso ou do fracasso com os pedidos de boicote a ambas as empresas é muito clara.

Para além da dificuldade de se aferir os resultados dos boicotes proclamados em meio digital, há outros problemas estruturais que deveriam ser avaliados.

Em primeiro lugar, o excesso de demanda. Marcas, empresas, produtos e pessoas vêm sendo alvo de pedidos de boicote. A maioria parece não manter grande fôlego, e são esquecidos conforme novas atrocidades são viralizadas. Há muito por se boicotar, muito contra o que protestar. Ademais, a viralização tende a funcionar por um mecanismo de urgências: por vezes, sentimos que há quase uma obrigação em se falar dos assuntos, em fazer crescer o coro dos descontentes. É um estrondo agilíssimo, mas passional e de curta duração.

Em segundo lugar, por mais simples que seja deixar de realizar algo—não comprar em dada loja, não ouvir dada canção, etc.—, é necessário um número muito grande de pessoas engajadas durante muito tempo; sem uma ação organizada que vá além da vontade individual, isso não tem como ser realizado. O boicote aos ônibus convocado por Martin Luther King e pela NAACP em 1955—seu primeiro sucesso na senda da revolta pacífica—foi um esforço conjunto de toda uma comunidade: a economicamente frágil população negra de Montgomery teve de se resignar a ir a pé ao trabalho, a contar com sistemas de caronas e outras medidas por mais de um ano; alguns foram presos. O ato mostra força não nos números, mas na capacidade de organização comunitária. Boicotes digitais endossados por viralizadores de cabeça quente dificilmente teriam o mesmo poder logístico.

Em terceiro lugar, como já deixei entrever acima, os efeitos do boicote nem sempre são claros. Ao se tratar de pessoas, podem ser levadas ao esquecimento e à ruína financeira. Parece-me, porém, que o boicote a empresas é muito mais importante e bem menos eficiente. Os primeiros a serem afetados por qualquer boicote eficaz a uma marca ou estabelecimento seriam os trabalhadores, que passariam a ser demitidos conforme minguasse o alvo do boicote; para os donos—quanto mais rico, mais calcado no rentismo—, a falência pode não passar de uma operação contábil, que permite, entre outras coisas, adiar ou escapar-se de pagar direitos trabalhistas. Deixar de comprar produtos Natura pelo comentário de Yara Resende sobre a morte do neto de Lula afetaria, em primeiro lugar, Yara Resende; a seguir, a revendedora de quem você compra—sua vizinha, colega ou amiga, a mãe que complementa a rarefeita renda—, mas é bem menos evidente que chegue até João Paulo Ferreira, atual presidente-executivo da empresa.

Finalmente, boicotes a empresas são bem menos eficientes porque, dado o fato de que vivemos em um mundo de oligopólios, é muito mais difícil boicotá-las; gostemos ou não, são realidades muito mais complexas, multifacetadas e abrangentes que qualquer indivíduo, muito mais inextricáveis que este ou aquele artista; conseqüentemente, recebem muito mais facilmente o perdão dos engajados: uma campanha publicitária inclusiva, um programa com conteúdo mais progressista podem ser o suficiente para justificar o fato de que talvez deixemos de seguir Valesca nas redes sociais, mas não conseguiremos deixar de seguir uma novela. Atualmente, a grande mídia brasileira, sempre muito menos que neutra em qualquer período eleitoral, colhe um punhado de louros por atacar o presente governo—e alguns lhe são regalados por quem muito bem sabe de seu papel eleitoreiro. (No caso supracitado da Natura, desde que foi vetada uma propaganda do Banco do Brasil, marcas como Burger King e Natura reagiram com ações inclusivas; o boicote à Natura vem, agora, sendo solicitado pelo campo conservador—aparentemente, sem sucesso.)

Assim, apesar da sinceridade e justeza dos crescentes pedidos de boicote, não estão livres de problemas que fazem com que a maioria deles não saia do chão (ou das redes). Pessoalmente, gostaria que Madonna houvesse ouvido os que lhe pediam que não se apresentasse—o Boycott, Divestment and Sanctions Movement (BDS), que há muito anos vem promovendo, de forma consistente e organizada, ações contra o apartheid promovido pelo Estado de Israel, com inúmeros sucessos importantes—; não precisa desse show, e sua voz seria extremamente importante. Como alguém que teve a adolescência marcada por Madonna, e que teve de contender com os próprios valores para apreciá-la, fere-me que faça ouvidos moucos aos clamores por nada menos que a vida de um povo, em franco processo de extermínio. Mas julgo pouco provável que a polêmica venha a afetar as vendas de seu disco, mesmo levemente.