Dois irmãos briguentos

Dois irmãos briguentos

O Eurovision Song Contest, ocorrido ontem (sábado, 18/maio/2019) em Tel Aviv, Israel, não passou sem protestos, motivados pelo Boycott, Divestment and Sanctions Movement (BDS), que vem, desde 2005, denunciando a política de apartheid aplicada pelo Estado de Israel ao povo palestino, a expropriação contínua de suas terras e as condições desumanas de vida que lhe são impostas desde a fundação do Estado de Israel.

Durante esta edição sediada em Israel, o Eurovision foi palco para dois protestos: a delegação da Islândia, o grupo Hatari, trouxe ao palco a bandeira da Palestina; mais ruidosamente, a cantora Madonna apresentou bailarinos com as bandeiras de Israel e da Palestina. Nenhuma das manifestações era prevista, e os organizadores reagiram: a organização afirmou haver multado o grupo Hatari. (O BDS e inúmeros apoiadores haviam solicitado a Madonna que cancelasse sua apresentação em respeito aos direitos humanos do povo palestino; em nota, também rechaçou a atitude da delegação islandesa, que, apesar de seu gesto, furou o boicote proposto ao se apresentar.)

Delegação da Islândia, o grupo Hatari, exibe bandeira da Palestina durante o Eurovision Song Contest.

Estes “protestos” durante um evento ao qual se pedia que houvesse boicote—coincidência ou não, aproximadamente metade dos ingressos não havia sido vendida, restando poucos dias para o evento—nos permitem tirar importantes lições; também deveriam nos estimular a analisar as atitudes dos “manifestantes” em maior profundidade, recusando-nos a aceitar seus significados mais aparentes.

A primeira lição que devemos derivar do evento é a de que, de fato, eventos culturais em Israel têm por objetivo projetar uma imagem positiva do Estado de Israel, e que isso é feito apagando-se completamente toda e qualquer menção à Palestina. Para que o genocídio seja bem-sucedido, é imperativo que a opinião pública mundial não o veja: desumaniza-se o povo e esvazia-se simbolicamente a terra. Assim, representar o povo palestino de qualquer modo—não importa quão vago, insípido, insignificante e passageiro—torna-se uma afronta ao organizadores e ao país; a simples menção da palavra paz sugere que a paz é um problema, e isso também é ofensivo—afinal, por que a paz seria um problema? O povo palestino, de acordo com as representações geradas pelo Estado de Israel, não existe. Isso vai desde os livros escolares até os eventos como a Parada Gay de Tel Aviv e a Eurovision.

Nurit Peled-Elhanan fala sobre sua pesquisa sobre a representação da Palestina em livros escolares israelenses. A pesquisa foi publcada no volume Palestine in Israeli School Books: Ideology and Propaganda in Education.

A segunda lição, derivada da primeira, deveria ser justamente a importância extrema de boicotes ao Estado de Israel e a seus modos de gerar representações públicas de si mesmo. Boicotar a Eurovision ou qualquer outro evento em Israel significa negar-se a tomar parte em uma representação pública que apaga o conflito, ao apagar da construção simbólica toda e qualquer menção ao povo que vem sendo massacrado. O BDS Movement tem justamente esse objetivo: pedir que a comunidade artística não tome parte nessa construção discursiva deletéria. Inúmeros artistas aceitaram o convite do movimento, e cancelaram shows ao longo dos últimos anos, dentre eles Cat Power, Lorde, Lauryn Hill, Lana Del Rey, Shakira, Shlohmo, Neil Young e Gilberto Gil; algumas, como Lauryn e Lana, queixaram-se de não ser possível tocar também para os palestinos em território palestino. Também é importante lembrar o posicionamento de Natalie Portman, que se recusou a receber o Prêmio Gênesis oferecido por Israel.

O fato de os pseudo-protestos ocorridos na Eurovision nos mostrarem isso não muda o fato de que as celebridades convidadas a boicotar o evento e que, mesmo assim, tomaram dele parte, devam ser responsabilizadas. Seus “protestos” devem ser lidos em profundidade, e não de modo superficial.

Ao longo de sua carreira, Madonna tornou-se especialista em gerar controvérsias controladas; em assumir riscos calculados que projetam sua imagem, enquanto dois lados opostos vociferam contra e a favor de suas posturas, intencionalmente ambíguas e vazias em muitos casos. Sua performance na Eurovision seguiu esse caminho, e pode ser mais uma de suas vitórias sobre a opinião pública: falaremos bem ou mal, mas falaremos dela.

Ao colocar seus bailarinos com as bandeiras de Israel e da Palestina e fazer apelos genéricos à “paz”, Madonna enfureceu os organizadores. Trata-se, porém, de um risco calculado: a cantora pode se dar ao luxo de irritá-los; tem suficiente lastro para que um produtorzinho emputecido não limite suas possibilidades de fazer contatos e shows. Assim, a afronta não é real; é uma encenação feita para limpar seu nome, após haver chamado de “interesses políticos de terceiros” (someone’s political agenda) o pedido de boicote—uma frase fria e cruel, que trata o pedido pela vida de todo um povo como uma negociata. Pessoalmente, jamais a esquecerei.

Pior que isso—pior que haver usado o sofrimento do povo palestino para se promover—é o modo como o conflito é retratado. Madonna já o havia representado, em sua Confessions Tour, através de dois bailarinos: ambos têm aproximadamente a mesma altura, o mesmo porte, o mesmo corte de cabelo, o mesmo cavanhaque, feições bastante semelhantes e trazem os símbolos do islã e do judaísmo pintados sobre o abdome com o mesmo tamanho.

A absoluta paridade na representação dos dois lados os faz parecer irmãos gêmeos brigando, e o cerne das representações do conflito geradas por Madonna—na Confessions e na Eurovision—é justamente esse: o tropo da “briga de irmãos”. Esse tropo representa ambos os lados como irmãos engalfinhados; ora, os pais, árbitros obrigatórios de disputas fraternas, normalmente evitam tomar lados; dizem que ambos estão errados, pedem que façam as pazes ou mandam a ambos para o castigo. (Vocês devem se lembrar do meme de dois irmãos usando uma camiseta enorme, cujo objetivo é levá-los a fazer as pazes. Pois bem.) Assim, Madonna se coloca como “neutra”, acima de “dois lados que estão errados”—lados esses que são, como dois irmãos, paritários, equivalentes em poder e em erro. Nada poderia ser mais injusto e equivocado. Temos aqui um estado usando de estratégias políticas, militares, judiciais e simbólicas para tomar a terra e aniquilar um povo inteiro. Um estado que sequer admite que esse povo seja mencionado.

Assim, mais que sua recusa a tomar parte no boicote, é a representação propagada pelo “ativismo político” de uma popstar cuidadosamente polêmica que me entristece. Madonna foi insensível aos apelos do BDS pela vida do povo palestino; egoísta ao usar seu sofrimento para se auto-promover; superficial ao retratar o conflito através de um tropo batido, cansado, massivamente falso.

Espero que as lições que mencionei acima sejam, de fato, compreendidas pela comunidade artística. E espero (com pouca esperança, admito) que Madonna seja responsabilizada por tratar a política e o genocídio como exercícios publicitários.