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Os verbos de fala reportada em citações indiretas

Citações indiretas requerem o uso de verbos de fala reportada (dizer, afirmar, etc.). Estes verbos não são todos sinônimos entre si, e devem ser escolhidos cautelosamente. Como selecionar o mais adequado?
Os verbos de fala reportada em citações indiretas
Photo by Volodymyr Hryshchenko / Unsplash

A citação direta é um subterfúgio ao mesmo tempo importante e fácil. É importante (mesmo que moderação em seu uso seja mais que recomendável), pois nos auxilia a prestar atenção minuciosa ao texto de nossas fontes; é fácil, pois citar diretamente poupa nosso próprio trabalho redacional, alongando nossos textos. A citação direta também nos auxilia a evitar uma outra minúcia da escrita, que tente a atormentar escritores menos proficientes: o uso de verbos de fala reportada.

A fala de terceiros, como bem nos lembramos de nossas aulas de português escolar, pode ser transmitida em discurso direto ou indireto:

D. Beatriz disse a sua filha Carlota que a acompanhasse à sala, e apenas ali chegaram ambas proferiu a senhora o seguinte speech:
– Minha filha, hoje termina a tua vida de solteira, e amanhã começa a tua vida de casada. […] (Machado de Assis, 2007, pp. 79-80)

Neste trecho, a fala menos importante de D. Beatriz é reportada em discurso indireto, com as devidas transformações em pronomes e tempos verbais (acompanha-me até à sala > que a acompanhasse até à sala); a fala mais importante é deixada em discurso direto. Os verbos dizer e proferir são os verbos de fala reportada.

Em discurso acadêmico, reportar indiretamente o texto de nossas fontes requer selecionar dentre o repertório de verbos de fala reportada; é uma tarefa uma pouco mais difícil do que pode parecer, e inúmeros redatores menos experientes ou talvez distraídos selecionam verbos inadequados, não condizentes com o teor do que reportam. Em tradução, para preservar a comunicabilidade e o dinamismo do texto, talvez seja necessário traduzir não o verbo empregado, mas o que deveria haver sido—o sentido pretendido, inferível do contexto, não o explicitado, destoante (já discorri sobre a confiabilidade e a clareza dos tradutores em outras oportunidades). O que segue fornece um breve guia para auxiliar autores acadêmicos a compreenderem melhor estes verbos, para selecioná-los com maior adequação:

Afirmar: Trata-se de nosso coringa, o verbo que pode ser substituído por expressões como de acordo com Fulano ou segundo Sicrano ou conforme Beltrano. Não obstante, deve-se atentar a seu significado: uma afirmação (ou asserção) deve cumprir dois requisitos: (1) deve ser original do autor citado; (2) deve ser algo em que o autor acredita (justamente por isso afirma, ou seja, diz ser verdadeiro). Citar Silva dizendo que a água ferve a 100 ºC (um truísmo da ciência escolar) parece fazer pouco sentido; citar que Silva afirma algo que seu texto nega seria infinitamente pior.

Argumentar: Favorito para maus usos. Nem tudo que um autor afirma é um argumento. Em sentido estrito, um argumento é um corpo estruturado de proposições, que contém premissas e uma conclusão, de modo tal que as premissas estabelecem a verdade da conclusão; em sentido amplo, as premissas que defendem uma determinada idéia podem ser chamadas argumentos. Defender a relação entre câncer de pulmão e tabagismo (ou seja, a asserção: existe uma relação causal entre câncer de pulmão e tabagismo) com base em dados estatísticos faz desses dados argumentos. Assim, para dizer que um autor argumenta que x, é necessário que x seja precisamente uma das idéias que dão apoio a uma tese qualquer defendida pelo autor. Argumentar não deve ser usado como sinônimo puro e simples de afirmar.

Assinalar, destacar, ressaltar, salientar: Assim como nem toda afirmação é argumento, nem tudo que um autor afirma foi assinalado por ele. Todos estes verbos significam dar ênfase, chamar atenção à importância de algo. Se a idéia não recebe tratamento enfático pelo autor, então não se pode reportar que foi assinalada.

Defender: Assim como argumentar é um verbo para premissas, defender será melhor empregado se se referir às conclusões, ou seja, às teses que o autor está sustentando. Em nosso exemplo anterior, o autor não defende os dados estatísticos que emprega, mas os toma como dados com os quais o leitor muito provavelmente concordará, pois foram estabelecidos por outras fontes; a idéia que defende através desses dados é a relação causal entre câncer de pulmão e tabagismo. Note-se que um autor pode defender tanto idéias suas—aquelas que deseja estabelecer em seu texto—quanto de terceiros, com as quais deseje contribuir.

Lembrar: O autor citado pode estar lançando mão de uma informação que espera ser de conhecimento de seu leitor—ou seja, trata-se de informação que considera dada, não de informação nova. Nesse sentido, pode talvez ser intercambiável com pontuar e notar.

Ponderar: Sugere avaliação minuciosa ou reflexão; como tal, refere-se antes a um processo de raciocínio que a uma asserção qualquer dele oriunda. Também pode significar a exposição de um pensamento ou, mais propriamente, de um argumento (em sentido amplo). Requer, portanto, o mesmo cuidado que se deve ter com argumentar. Como uma pessoa ponderada é sensata ou prudente, talvez seja melhor empregado para argumentos que indicam a cautela ou o zelo do autor citado.

Perorar: Em sentido estrito, é a finalização de um discurso; por extensão, pode representar o discurso em si (especialmente se longo) ou a defesa mesma que se faz de algo por meio de discurso. Não muito recorrente em textos acadêmicos, será melhor arriscado por escritores mais experimentados.

Pontuar: Um verbo um tanto difícil. Não encontro em dicionários qualquer significado como verbo de fala reportada, embora seja, de fato, assim usado. Podemos trabalhar analogicamente: um ponto (sinal de pontuação ou elemento gráfico) é uma inserção pequena num corpo maior (texto ou figura). Portanto, parece um verbo mais indicado para comentários ou argumentos (premissas) talvez marginais ou menores, não para teses ou conclusões. Será talvez um sinônimo mais fraco de afirmar ou lembrar; na dúvida, evite-o.

Pontuar
Significado de Pontuar no Dicio, Dicionário Online de Português. O que é pontuar: v.t. Marcar com pontuação; pôr os sinais ortográficos em.

Notar: Quando notamos algo, prestamos-lhe atenção. Nesse sentido, os dicionários o associam a críticas e censuras. Talvez admita outros usos, como sinônimo mais fraco de assinalar, lembrar ou pontuar.

Notar
Significado de Notar no Dicio, Dicionário Online de Português. O que é notar: v.t. Pôr nota, marca ou sinal em. Tomar notas; anotar. Atentar em, reparar em, observar. Censurar, tachar.

Como se pode ver, existem vários sinônimos quase-perfeitos, e saber qual(is) empregar pode ser uma combinação entre consultar dicionários e a própria intuição. O escritor menos proficiente deve evitar pensar que são sinônimos e usá-los intercambiavelmente apenas para não se tornar repetitivo; também deve estar atento a cacoetes: seria aconselhável apegar-se a alguns verbos-chave, evitando os que se conhece menos, mas, se estamos empregando um verbo com recorrência excessiva, pode ser um vício de escrita, não uma marca de estilo.

Isso salienta a importância de o artigo passar por uma revisão textual anterior à tradução; se o tradutor percebe que o verbo empregado se encaixa mal ao contexto e à citação, talvez o mantenha por respeito, talvez o traduza por outro mais adequado, mas o ideal seria que o texto não repassasse estas dúvidas e escolhas a quem o traduz. Novamente, dialogar com o tradutor pode ser a melhor saída.

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