Poesia traduzida no Brasil: entrevista com Marlova Aseff
Os Estudos de Tradução podem parecer, a muita gente, comparativos por natureza. Como a atividade tradutória, em seu nível mais elementar, ocorre sempre entre dois textos (o original ou texto-fonte e sua tradução ou texto-meta), a tradução parece convidar ao contraste e à comparação. Assim, talvez pareçam inescapáveis a seu estudo não só a Formação de Tradutores e sua aliada, a Avaliação (ou Controle de Qualidade) de Traduções, mas também a Crítica de Traduções (literárias); vistos desta forma, os Estudos de Tradução se constituem como ciência aplicada.
Ocorre porém, que há tarefas mais propriamente teóricas que devem ser desempenhadas para um estudo sistemático, que permita descrever o papel sócio-histórico das traduções, bem como de tradutoras e tradutores. Para o estudo sistemático da tradução além das fronteiras da crítica e da avaliação de textos individuais, é necessária uma coleta de dados que vão além dos conteúdos dos textos: é necessário coligir catálogos de tradutoras, tradutores, editoras, edições, locais de publicação, bem como uma série de outros documentos.
Tivemos a oportunidade de conversar com Marlova Aseff, tradutora e pesquisadora, que lançou um site pioneiro neste sentido, o Poesia traduzida no Brasil. Conversamos um pouco com ela sobre a história e o funcionamento dessa iniciativa. Através dessa entrevista e dos linques disponíveis, convidamos você a conhecer um pouco mais essa história mais ampla da tradução no Brasil.
Conta pra gente como o projeto do site teve início. Qual foi sua motivação, de onde surgiu a ideia?
Em 2012, depois que concluí a minha tese sobre o papel dos poetas-tradutores na constituição dos cânones da poesia traduzida no Brasil, percebi que tinha em mãos um levantamento considerável de traduções de poesia publicadas em 50 anos no Brasil. Eu achava um desperdício que toda essa informação não fosse compartilhada com a comunidade. Então, em 2015, abriu um edital de pós-doutorado no pós-graduação em Literatura Comparada da UnB e eu me inscrevi com o projeto do site, cujo objetivo principal foi o de disponibilizar esse material para a comunidade científica e para a sociedade em geral em um catálogo online. Durante o pós-doc, eu ampliei e complementei os dados, e resolvi que o site também teria um espaço para publicar perfis de tradutores de poesia que aparecem no catálogo, gráficos, links e espaço para postagens. Para a minha alegria, o site foi lançado em agosto de 2016 e está tendo uma recepção muito boa, principalmente por parte dos pesquisadores.
Como está estruturado o catálogo?
Hoje, o site conta com 654 entradas bibliográficas. Trata-se de um catálogo de livros do gênero poesia publicados no Brasil entre 1960 e 2009, sendo que, pouco a pouco, estou cadastrando obras editadas antes e depois desse período. O levantamento abarca todas as línguas e literaturas encontradas e foi computada somente a data da primeira edição, pois, assim, pode-se ter uma ideia clara de quando determinada obra ingressou no sistema literário brasileiro em forma de tradução. Cada título traz uma ficha com a capa original do livro e as informações complementares que se teve acesso, como o nome do tradutor, o número de páginas, se a edição é bilíngue, se é uma antologia ou uma obra com poemas de um único autor, a língua do original, a literatura a que pertence a obra, informações sobre o paratexto, entre outras… O interessante é que, por meio da pesquisa avançada, pode-se cruzar vários campos para se obter uma informação refinada. Por exemplo, você pode pesquisar obras da literatura inglesa traduzidas por Paulo Vizioli nos anos 1980, ou buscar apenas antologias, ou buscar todas as traduções de Dante nesse período, e por aí vai…
O site parece ter uma função importante, que o aproxima do Index Translationum, do DITRA (Dicionário de Tradutores Literários no Brasil) e talvez mesmo da função da Fundação Biblioteca Nacional. Você vê alguma relação entre essas iniciativas todas e a sua?
Uma diferença básica é que nosso catálogo, como eu disse, limita-se ao gênero poesia, e também traz alguns registros que não estão no Index nem na Biblioteca Nacional. Infelizmente, o Index tem várias lacunas, assim como os registros da BN. Também tem o fato de o Index reunir registros somente a partir de 1979 e ter sido descontinuado há alguns anos. Para compor o catálogo do site, fiz uma pesquisa cruzada em várias fontes: catálogos de bibliotecas, sebos, livrarias, em busca da informação mais precisa possível… Modestamente, no âmbito da poesia, hoje, o Poesia Traduzida no Brasil reúne as informações mais completas. Já em relação ao DITRA, que é um dicionário de tradutores, nossa relação de perfis é bem menor, e eu diria que a proposta do DITRA é mais abrangente, pois traz biografias mais completas, listas e excertos de traduções… Vamos dizer que os perfis de tradutores no nosso site é um regalo, e não o foco.
A iniciativa do site me parece oferecer um suporte riquíssimo para tradutores o pesquisadores. Como você imagina que ele poderia contribuir para o fomento da tradução poética ou da pesquisa em tradução no Brasil?
Bem, os dados que estão disponíveis se prestam a inúmeras análises, há muitos projetos de pesquisa que podem se originar dali. Por abrangerem um período de tempo de cinco décadas, com todas as línguas e literaturas encontradas, é possível fazer análises panorâmicas do nosso sistema literário, verificando a diversificação de línguas e literaturas traduzidas, o crescimento dos números de poesia traduzida publicada, as mudanças nos locais de edição, e até mesmo encontrar algumas lacunas. Ou seja, identificar as obras que ainda não foram traduzidas no Brasil. Também é possível fazer recortes de gênero, analisando poetas mulheres cuja obra foi traduzida, a atuação das tradutoras, poesia de grupos étnicos minoritários etc.
A partir dos dados que você foi coletando para montar o site, como você enxerga a história da tradução poética no Brasil?
O Brasil tem construído uma tradição na tradução de poesia. No período estudado, entre os anos 1960 e 2000, o crescimento da tradução de poesia entre nós foi algo formidável e que se deu em vários níveis: número de obras traduzidas, diversificação de línguas e literaturas importadas ao sistema literário nacional, número tradutores envolvidos com a tradução de poesia, sem falar no interesse crescente de editoras por esse tipo de produção. Podemos dizer que se assistiu nesses anos à formação e ao amadurecimento de um mercado para poesia traduzida no país, e que esse é um subsistema bastante ativo no interior do nosso sistema literário. Em termos editoriais, ocorreu um salto numérico na década de 1980 e, nas décadas seguintes, os números seguiram crescendo.
Outro fator que pode ser destacado é a dedicação dos poetas brasileiros a essa tarefa. Isso foi fundamental para que a tradução de poesia no Brasil atingisse um nível de excelência. Desde os poetas das três gerações modernistas, que praticaram a tradução de poesia com muito empenho, com destaque Manuel Bandeira e Guilherme de Almeida, passando por nomes como Cecília Meireles, Henriqueta Lisboa, Péricles Eugênio da Silva Ramos, Geir Campos, Dora Ferreira da Silva, Idelma Ribeiro de Faria, Afonso Félix de Souza, entre muitos outros, até os poetas concretos, liderados pelos irmãos Campos, que deram à tradução de poesia no Brasil um novo significado. Esses poetas colocaram a tradução no centro do seu projeto e, a partir daí, a tradução de poesia tomou novo impulso no país. Com os concretos, a forma de se traduzir poesia ganhou maior liberdade criativa, pois eles defenderam que esse tipo de tradução não deveria priorizar o conteúdo (informação semântica), mas sim restituir a função poética do texto.
Hoje em dia, temos excelentes tradutores de poesia no país, e somos reconhecidos pela qualidade que alcançamos nessa tarefa tão difícil e delicada. O professor John Milton disse uma vez que a poesia traduzida deveria ser considerada um gênero da literatura brasileira contemporânea. Por que não, já que muitas das traduções feitas aqui alcançaram um alto de inventividade e qualidade artística?
Para o crescimento da documentação, o site aceita contribuições voluntárias? Como as pessoas devem fazer para enviar sugestões de obras para o catálogo?
Sim, temos um formulário na seção “Fale conosco” para receber contribuições para o catálogo ou para quem quiser reportar algum erro, ajuste ou melhoria. Na época do lançamento, recebemos várias contribuições. A tradutora e historiadora Denise Bottmann, que é uma entusiasta do projeto, me ajudou bastante. O blog dela (Não gosto de plágio) traz vários levantamentos bibliográficos muito úteis em relação ao que foi publicado no Brasil e que também ajudam a constituir a nossa história da tradução. Eu sempre digo que ter dados sistematizados e confiáveis é o primeiro passo para se escrever a história da tradução no Brasil.
Para contatar Marlova Aseff:
e-mail: marlova.aseff@gmail.com
Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4791740P6
Linkedin: https://www.linkedin.com/in/marlova-aseff-9784b641/