que morra: da dura empatia
Em duas ocasiões recentes, o filósofo e jornalista Hélio Schwarstman defendeu a racionalidade ética do desejo de que o atual presidente da república morra. A segunda destas está relacionada diretamente à notícia recente de que o presidente teria sido infectado pelo novo coronavírus. A notícia levou aos tópicos mais comentados do Twitter expressões como “Força Covid”, deixando claro que a morte de Bolsonaro parece altamente desejável.
Também na segunda destas ocasiões, o colunista Thiago Amparo rebateu os argumentos de Schwartsman. Amparo acredita que o argumento do filósofo nos iguala a Bolsonaro, fazendo um apelo a nosso ódio.
Amparo tem razão, mas não talvez como imagina. Schwartsman apela ao que chamou de conseqüencialismo, que preconiza que “ações são valoradas pelos resultados que produzem”; segundo o filósofo, esta teoria seria democrática, uma vez que as vidas de Bolsonaro e a dum mendigo valeriam a mesma coisa. Assim, seria justo e ético sacrificar uma vida em prol de um bem maior—neste caso, salvar milhares de vidas, resolver a crise política brasileira, e enfraquecer os argumentos negacionistas acerca da pandemia.
Não creio que se deva ler semelhantes argumentos ao pé da letra: se desejar a morte de Bolsonaro nos equipara a ele, como aponta Amparo, isso se deve ao fato de que o verdadeiro conseqüencialista não é Schwartsman, mas Bolsonaro. O filósofo apenas aplica ao presidente a mesma lógica que leva nosso triste mandatário, dentre outras coisas, a homenagear torturadores, afirmar que o Brasil necessitaria da morte de umas 30.000 pessoas, e adotar como estratégia de combate ao coronavírus (se é que podemos dizer que adota alguma) a “imunidade de rebanho”. Bolsonaro não deve morrer porque o odiamos; deve morrer porque seus próprios argumentos e sua visão utilitária da vida humana tornam a sua vida não apenas descartável, mas desnecessária, para não dizer um empecilho.
Não há dúvidas, porém, de que seu suposto adoecimento propõe um problema ético, talvez seja comparável ao paradoxo da tolerância de Popper: a tolerância ilimitada e restrita—ou seja, estendida também aos intolerantes—pode levar ao fim da tolerância. Para que outras opiniões tenham livre circulação, não se pode tolerar o nazismo; parece igualmente difícil imaginar que estenderíamos qualquer empatia ao principal nome ligado o nazismo: Adolf Hitler. Bolsonaro, já parece certo, está destinado a tornar-se o mesmo tipo de pária histórico que se tornou Hitler.
O paradoxo da tolerância é evocado para justificar nossa censura a determinados tipos de discursos enquanto preconizamos a ampla liberdade de expressão. Em se tratando de pessoas e não de idéias, ainda não me parece haver uma solução que consiga coadunar, por um lado, o valor universal da vida humana e, por outro, a morte de algumas figuras que põem em risco milhares de vidas, talvez o inteiro planeta.
O conseqüencialismo, ironicamente adotado por Schwartsman, nega o valor universal da vida, e portanto nossa defesa dele. É justamente contra o conseqüencialismo e afins que a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em seu artigo 3o, garante o direito universal à vida: ser humano algum tem direito sobre a vida de outro.
Por que isso é importante? Por que não podemos, de fato, ser conseqüencialistas? O valor universal da vida humana tem a consequência prática de evitar a primeira pergunta que se deve fazer ao se adotar uma abordagem que o negue: se nem todas as vidas são úteis, se é verdade que o bem comum pode prescindir de algumas vidas ou precisar de algumas mortes, quem decide quais devem ser extirpadas? Quem tem direito sobre a vida alheia?
Quando observamos as injustiças cometidas pelos sistemas judiciais e penais no mundo todo, quando somos informados que inocentes foram levados a cadeira elétrica em países onde a pena de morte é legalizada, vemos facilmente que, se desejamos abrir mão valor do valor universal da vida, devemos ser capazes de conseguir juízes e executores legais não só universalmente justos, mas universalmente infalíveis. Trocamos uma universalidade teórica e de mais fácil execução (embora ainda estejamos cambaleando no sentido de alcançá-la) por duas universalidades fatuais, cuja execução (isolada ou combinada) é quase paradoxalmente impossível. Para a máxima proteção dos inocentes, faz-se necessário, por vezes, limitar os tipos disponíveis de responsabilização dos culpados.
Assim sendo, pareceria haver uma negação tácita do valor universal da vida ao se desejar que o presidente morra. Não obstante, desejar a morte não é imediatamente equivalente a desejar matar. Quando o Ministro da Justiça, embasado na nova Lei de Segurança Nacional, solicita que Schwartsman seja investigado, demonstra não só ignorar (talvez propositadamente) tal diferença, mas também nos dá um excelente exemplo do funcionamento do paradoxo da tolerância, e portanto das muitas motivações à expressão de opiniões negativas tão fortes em relação à figura do presidente.
Em outra ocasião, discorri sobre a dificuldade em se prestar empatia a nossos desafetos em momentos de profundo sofrimento psicológico. O desespero gerado pelas políticas públicas (ou por sua ausência) adotadas pelo governo Bolsonaro para combater a pandemia do novo coronavírus estão afetando a saúde mental dos brasileiros mais conscientes—isolados em casa, largamente desempregados, inseguros pelo comportamento alheio, bombardeados de notícias ruins—; nesse estado alterado de consciência, o exercício criativo e relativamente abstrato da empatia pode ser difícil. Desejar a morte pode parecer extremo, mas talvez exceda, no presente momento, nosso controle consciente.
Além do mais, fantasias de violência e morte para com nossos desafetos não implicam qualquer desejo ou propensão real a cometer tais atos; para a maioria das pessoas, tais fantasias são formas de defesa psicológica interna. Se o desejo de morte a Bolsonaro fosse real em qualquer medida significativa, não creio que haveria terminado o primeiro ano de mandato. No atual estado de desespero e raiva—praticamente esgotadas ou excessivamente morosas as saídas institucionais, estratégica e sanitariamente impossibilitadas quaisquer tentativas de revolta—, resta-nos, ao menos, a fantasia de uma saída rápida, que ainda nos brinde com alguma justiça poética.
Nossa defesa do valor da vida não deve nunca prescindir de sua universalidade; não obstante, o mesmo tipo de empatia humanitária que nos faz defender a vida humana sem exceções deveria nos auxiliar a compreender o estado emocional coletivo que nos leva ao ponto de desejar, com alegria, a morte de um genocida.