ciência e autoria tradutória

ciência e autoria tradutória

Uma das mais importantes características do discurso científico, ao lado da falseabilidade e inseparável desta, é a honestidade intelectual. Para que seja possível falsear uma pesquisa—ou seja, demonstrar que seus resultados são problemáticos ou controversos devido a problemas de construção teórico-metodológicos—, é necessário que os pesquisadores, ao reportarem-nos, dentre outros procedimentos redacionais, sejam absolutamente claros acerca da autoria e da origem de suas idéias.

Isso implica que, ao divulgá-los por meio de relatórios, dissertações, teses, livros e artigos científicos, devem detalhar seus procedimentos, instrumentos e referencial teórico; além disso, devem pautar a redação do documento em procedimentos não-ambíguos de citação e reprodução de discurso alheio, para que o leitor não tenha dúvidas de quando estão oferecendo opiniões próprias, parafraseando as alheias ou citando-as textualmente.

No caso do referencial teórico, devem incluir nas referências bibliográficas todo e qualquer trabalho citado ao longo do texto, na edição exata que foi consultada. Também é praxe (no mundo anglófono ao menos) agradecer a colegas, em nota de rodapé, por idéias ou correções informalmente oferecidas, dando-lhes crédito: o colega que oferece sugestões ao ler versões anteriores à publicação, aquele com quem trocamos e-mails e que nos faz lembretes importantes, uma idéia que nos haja sido sugerida ao corrigir trabalhos de alunos, etc.

Todos esses procedimentos de cuidadoso registro da origem de nossas idéias estão relacionados ao fato de que, embora busque conhecimento imparcial, unânime e universal, a ciência tem história: as idéias não existem no vácuo, mas são fruto de configurações sócio-históricas específicas e de determinados delineamentos, tanto ideológicos quanto puramente fatuais.

Para falar primeiro dos fatuais, recentemente, o paleontólogo Stephen L. Brusatte—autor de The Rise and Fall of the Dinosaurs (Ascenção e queda dos dinossauros, 2018)—contribuiu para um vídeo do canal It’s Okay to be Smart, intitulado What is a Dinosaur and What Isn’t? (O que é um dinossauro e o que não é?). Seu depoimento final, ao qual traduzo abaixo, ilustra perfeitamente a historicidade inerente ao fazer científico, ao pontuar que a ordem em que os fósseis são descobertos pode afetar a classificação científica construída a partir deles:

Podemos facilmente imaginar um mundo onde, na Inglaterra vitoriana, algum ricaço bem-relacionado da alta sociedade descobrisse um belo esqueleto de pterodátilo; podemos ver como Richard Owen, ao cunhar o termo dinossauro, poderia haver então incluído pterodátilos em sua lista de dinossauros. A convenção [classificatória] haveria sido diferente [da atual], e incluiria os pterodátilos na árvore genealógica dos dinossauros. É fácil imaginar os grandes impactos que mudanças singelas na história de como descobrimos e estudamos as coisas teriam em como, mais tarde, são classificadas e definidas.

A ciência, mais que um conjunto de achados, teorias e procedimentos, é uma instituição humana; em seu fazer institucional, divide-se em grupos ideológicos e correntes de pensamento, às vezes francamente hostis. Uma das correções comuns a estudantes iniciantes de pós-graduação é justamente a de que não se deve citar conjuntamente autores versando sobre dado assunto, sem verificar a confluência entre idéias ou correntes de pensamento. Citar, para defender algum ponto, autores que pertencem a linhas distintas ou rivais é algo que não pode ser feito sem a consciência desta distinção.

Para sanar os riscos inerentes à parcialidade humana, alguns periódicos já exigem uma declaração de ausência de conflito de interesses; confesso que, embora respeitável, soa-me um tanto ingênua a exigência: quem, em sã consciência, iria se declarar impedido das próprias idéias? Auto-declaração alguma limpará qualquer trabalho de máculas ideológicas, mas sim sua configuração teórico-metodológica, e o detalhamento de sua redação, não para que pense o leitor ser o trabalho livre de viés, mas para que saiba quais são os vieses presentes; para que possa analisar o trabalho a partir não só de sua redação, mas de seu contexto redacional e de pesquisa.

Em outra ocasião, já aprontei que a tradução de artigos científicos pode contender com problemas de honestidade intelectual quando o tradutor precisa verter citações diretas: ao se apresentar uma citação em língua estrangeira, não se pode dar a entender que os autores do trabalho leram o texto citado em língua estrangeira, se não foi este o caso; tampouco deve-se dar a entender que existe tradução disponível para dado texto quando, na verdade, não há; citar um texto em inglês e oferecer nas referências bibliográficas uma edição em português também pode causar algum estranhamento a um leitor atento.

Estes problemas, como apontei em outro artigo, estão relacionados principalmente ao fato de que as instituições acadêmicas—contrariando o princípio de honestidade intelectual no qual se devem pautar—ainda não incorporaram a prática de oferecer crédito aos tradutores em alguns gêneros textuais científicos: resumos de artigos, dissertações e teses são freqüentemente traduzidos por terceiros, cujos nomes não figuram nos textos publicados; pouquíssimas revistas fazem questão de que os tradutores sejam creditados quando incluem em seus números artigos originalmente publicados em tradução.

Quando traduzimos para agências, o anonimato é parte necessária da mediação agencial. O tradutor não negocia nem conversa diretamente com o cliente (qualquer solicitação de esclarecimentos será feita à agência, que a repassará); se algum crédito for oferecido, muito provavelmente será à agência—em se tratando de encomendas não acadêmicas, bem entendido, pois nas acadêmicas, para determinados gêneros, a norma é o anonimato. Para os tradutores, a perda é óbvia: muitas vezes, traduzimos textos sigilosos, que não poderiam de forma alguma figurar em nossos portfólios; se nossos nomes não constam nem mesmo de textos publicados e disponíveis para consulta, nossos portifólios—nossa possibilidade de comprovação de nossa competência e experiência em determinado gênero de tradução—são ainda mais fortemente comprometidos.

De que modos, porém, a falseabilidade e a honestidade intelectual são afetadas pela prática de não se creditar os tradutores de determinados gêneros acadêmicos?

Em primeiro lugar, as etapas de produção do documento não estão todas especificadas: a tradução, como etapa anterior à publicação, é, sim, parte do processo de redação. Não oferecer aos leitores a indicação clara de que o texto foi redigido originalmente em outra língua significa abstrair-lhes informações talvez importantes à leitura. Um texto traduzido, por mais competente que seja a tradução, poderá sempre conter marcas que indiquem seu caráter tradutório; o leitor proficiente saberá como se relacionar com elas, se souber atribuí-las ao fato de que o texto é traduzido. (Não por acaso, no estudo das línguas naturais e no ensino escolar da norma-padrão, não se costuma empregar traduções como parte do corpus, preferindo-se textos originais. Isso não é demérito às traduções, mas simplesmente o reconhecimento de que podem ser originadas por práticas lingüísticas que lhes são peculiares, e não se manifestam quando escrevemos diretamente em dada língua.)

Em segundo lugar, como já pude observar em outra ocasião, tradutores são interventores terminológicos. Embora não participem das etapas de produção da pesquisa, nem da redação do texto em língua-fonte, desempenham uma importante tarefa teórico-metodológica: a manutenção (não raro a cunhagem) de termos científicos. Não só a coerência interna do artigo publicado em tradução, mas também sua coerência terminológica em relação ao corpo de pesquisas de que deriva e com o qual interage são tarefas do tradutor. Embora nenhum campo de conhecimento apresente terminologia inteira e inequivocamente unânime, os tradutores têm a função de otimizar o léxico terminológico das áreas para as quais traduzem. Caso o tradutor adote opções menos felizes, os autores do artigo estariam resguardados de críticas terminológicas se a atribuição de autoria tradutória fosse explícita.

Em terceiro lugar, no caso específico de resumos e abstracts, talvez nos esqueçamos muitas vezes de que a comunidade acadêmica internacional, se incapaz de ler em nossa língua, terá acesso apenas aos resumos. Os abstracts são responsáveis pela internacionalização de nossos resultados de pesquisa quando nossos artigos não podem ser integralmente consultados. Se a comunidade acadêmica prestasse mais atenção a esta sua importante função, não só os resumos seriam mais cautelosamente redigidos, mas também talvez se pensasse na importância de creditar quem os traduz.

Finalmente, alguns periódicos já exigem, mais que a listagem dos autores, a discriminação das funções incumbidas a cada um. Esta divisão de tarefas é explicitada normalmente ao final do artigo, próxima à declaração de ausência de conflito de interesses. Talvez pareça um pouco radical sugerir que tradutores sejam vistos como co-autores, mas se o periódico (não erroneamente) julga pertinente e necessário que cada co-autor receba crédito específico pela parte que lhe coube realizar, não faria sentido creditar o tradutor ao lado dos demais envolvidos no processo de composição do texto? Em alguns tipos de pesquisa, o bolsista que realiza um experimento laboratorial e o pesquisador responsável pelo laboratório são creditados como co-autores, muitas vezes sem que tenham escrito uma linha, por sua participação e responsabilidade nas etapas do processo de pesquisa. Se julgamos cientificamente correto creditar contribuições não-redacionais, por que não creditar quem traduziu?

Dar crédito aos tradutores não seria apenas questão de ética ou bons modos: parece-me parte indispensável dos critérios que devem ser adotados para se garantir a mais alta falseabilidade e honestidade intelectual, que são inerentes e indispensáveis ao fazer científico. Espero, honestamente, que os periódicos e programas de pós-graduação comecem num futuro próximo a adotar práticas de explicitação de autoria tradutória.

Publicando artigos internacionalmente: o seu tradutor deve fazer parte da equipe de pesquisa?
No atual contexto de produção científica—em que idéias devem ser cada vez maisrapidamente produzidas, testadas e difundidas—, existe uma pressão constantesobre pesquisadores e grupos de pesquisa não-anglófonos para que seus resultadossejam publicados em periódicos [/dica-de-tradutor-periodicos/] …