Sylvie Vandaele fala sobre inteligência artificial e tradução
A inteligência artificial (IA), especialmente em sua exploração da simulação de línguas naturais, está na encruzilhada entre ser uma auxiliar de tradutores humanos e sua substituta.
Como auxiliar, desenvolve ferramentas e plataformas de tradução como Trados, MemoQ, SmartCAT, WordFast e OmegaT, que agilizam o trabalho do tradutor, auxiliando-o a criar glossários e memórias de tradução, e a encontrar traduções automáticas mais e mais afinadas e prontas para uso (embora muita revisão ainda seja necessária quando se trata da tradução automática de textos para além de umas poucas e simples sentenças).
A criação de robôs, no entanto, que interagem com seres humanos e simulam uma experiência comunicativa autêntica (você já falou com um deles ao clicar em janelas de diálogo de determinados sites, e mesmo talvez no RG da sua empresa) aponta para a superação da mão-de-obra humana: há robôs tomando conta de fábricas de armazéns ou atuando como cães-de-guarda, já se vê robôs atuando como âncoras e em fase de testes para atuarem como professores.
Sylvie Vandaele, professora titular do Departamento de Lingüística e Tradução da Universidade de Montréal (Udem), recentemente abordou a relação entre tradutores e IA; seu texto, intitulado Intelligence artificielle et traduction: quelle place pour les traducteurs humains? [IA e tradução: qual o lugar dos tradutores humanos?] é parte da série Ce que l’IA changera dans maints volets de nos vies [O que a IA mudará nos vários aspectos de nossas vidas] publicada pela Udem Nouvelles; a série conta com a opinião de diversos especialistas acerca da relação da IA com diversos campos (educação, radiologia, neurosciência, direito, etc.).
Vandaele, no caso específico da tradução, aborda o problema da “morte do tradutor”—do tradutor técnico, em todo caso—e do achatamento de vencimentos. Para a autora:
Essa visão reducionista e chocante […] não leva em conta a diversidade das situações e das práticas; baseia-se no lugar comum que opõe a literatura “ao resto”, como se, entre o manual de instruções e a literatura não houvesse nada, e como se os escritos científicos, i.e. técnicos, não fossem produtos da cultura submetidos a múltiplos parâmetros. Também dá a entender que os resultados [da tradução automática] são 100% confiáveis.
Os pesquisadores são, no entanto, mais prudentes, pois reconhecem que certas dimensões ainda escapam à máquina (tratamento de referências extralingüísticas, elementos sintáticos e de coesão, etc.).
(Minha tradução de todas as citações.)
Também aponta as ressalvas que devem ser feitas à ameaça de substituição total e imediata do tradutor humano por máquinas:
Primeiramente, a validação da tradução por um tradutor humano competente ainda é necessária. O corpus que serve ao treinamento das máquinas constitui a chave para o sucesso da automatização: deve ser vasto e de alta qualidade. Ora, os conhecimentos e as línguas evoluem; deve-se, portanto, alimentar continuamente a máquina com corpus pertinente.
Ademais, a IA oferece uma solução tradutória calculada a partir do corpus: na prática, os numerosos parâmetros oriundos da situação comunicacional e que interferem na função do texto (público-alvo, variação diatópica [ver nota abaixo], particularidades locais, preferências dos clientes, etc.) impõem amiúde o descarte do corpus.
Empregadores e clientes não devem, portanto, cometer o erro de achar que o poder crescente da IA dá azo à sonhada oportunidade de achatar salários e tarifas de trabalhadores autônomos. O tempo ganho pode diminuir consideravelmente o custo da tradução de uma obra, mas as horas despendidas com “pós-edição” ou revisão também custam dinheiro. Em outras palavras, a natureza dos encargos muda, mas as competências requeridas se tornam mais complexas.
Também é importante, contudo, repensar a formação de tradutores:
mais que uma questão de língua, trata-se de dominar as múltiplas dimensões da comunicação. O ensino deverá se voltar, sem dúvida, aos dispositivos de transmissão de informação, especialmente no que concerne a avaliação de competências.
Certamente, os tradutores devem ser preparados para usar ferramentas de informática, mas o jogo se joga, sobretudo, no campo da cognição e dos saberes.
Assim, Vandaele descarta a IA como principal inimiga dos tradutores:
o que mais ameaça o tradutor não é a IA, pois o tradutor saberá se adaptar a ela e tomá-la em mãos, mas antes a pressão ao achatamento da remuneração suscitado pela concorrência internacional, e alimentado por várias idéias difundidas sobre a operação de tradução, cuja complexidade ainda é largamente subestimada pelo público.
O futuro, ao que parece, reserva desafios tanto aos tradutores enquanto categoria profissional—combate ao preconceito, às concepções redutores e equivocadas e à invisibilidade, unificação da categoria—quanto aos formadores de tradutores, que devem incluir progressivamente os avanços da IA nos quadros curriculares.
Nota: Variação diatópica
Em sociolingüística, diz respeito às variações na fala conforme a região geográfica. Pense-se, por exemplo, nos sotaques regionais, ou nos diferentes nomes para determinados itens (mandioca, macaxeira, aipim, etc.) em diferentes regiões do Brasil.