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Tradutora, investigadora, blogueira: entrevista com Denise Bottmann

Tradutora, investigadora, blogueira: entrevista com Denise Bottmann
Photo by Ellen Qin / Unsplash

A tradutora, escritora e pesquisadora Denise Bottmann é um dos mais importantes nomes da tradução no Brasil. Sua atividade como pesquisadora independente auxilia a resgatar a memória de tradução (como podemos ver em seu blogue arquivo de traduções) e também a repensarmos a honestidade intelectual do mercado editorial brasileiro (como fica evidente por meu favorito, o não gosto de plágio).

Bottmann muito gentilmente respondeu a algumas perguntas sobre sua atividade profissional como tradutora e investigadora.

Em sua entrevista ao Digestivo cultural, você comentou que vem desenvolvendo uma pesquisa independente no campo de História da Tradução. Gostaria que falasse um pouco da pesquisa em si, e de como é pesquisar sem vínculos institucionais.

Ah, é ótimo, faço o que quero do jeito e no ritmo que quero, sem maiores preocupações e sem ter de prestar contas senão a mim mesma. Por outro lado, como tento manter um mínimo de rigor e solidez nas pesquisas, encontro generoso espaço de publicação dos artigos resultantes dessas pesquisas em diversos periódicos universitários ligados à área. Então sinto-me agraciada com o melhor dos dois mundos: a liberdade do pesquisador independente e a receptividade na academia.

Sua última postagem no não gosto de plágio é uma entrevista de José Nunes que detalha o seu processo individual de tradução. Mas você também já traduziu a várias mãos. Quais as diferenças entre traduzir uma obra integralmente e traduzi-la dividindo-a com outras pessoas?

Veja, essas traduções a várias mãos se dão basicamente por problemas de prazo. A editora pretende lançar rapidamente aquela obra, por qualquer razão que seja, e avalia que um tradutor só não teria condições de fazer a tradução inteira no curto prazo exigido. Assim, opta por dividir a obra em duas ou mais partes, que entrega a dois ou mais tradutores. Normalmente não há um contato assíduo entre os diversos incumbidos da tarefa, e cada qual faz sua parte. A padronização do texto e a uniformização dos termos costumam ficar, na maioria das vezes, a cargo do preparador – que certamente é quem mais sofre nesse processo. Assim, pelo menos para mim, não faz muita diferença. Traduzo aquela parte como se fosse um todo – e é mesmo um todo, pelo menos como tarefa que me foi atribuída. Não gosto muito do sistema; aliás, imagino que nenhum dos envolvidos goste muito, mas são decisões editoriais que têm lá sua razão de ser e não cabe a mim achar ou deixar de achar nada.

Além de tradutora e autora, você também mantém uma intensa atividade nas redes sociais: uma conta bastante ativa no Twitter e alguns blogs—alguns pontuais, como o blogue a biografia do Van Gogh, e outros mais duradouros, como o não gosto de plágio. Inúmeras tradutoras e tradutores vêm, nos últimos tempos, participando dessa onda de digitalização, e buscando se tornar influencers em seus campos. Como você encara esse movimento, desde o ponto de vista da quase proverbial “invisibilidade do tradutor”?

Na verdade, não uso quase o Twitter. Minha conta no Facebook é vinculada à do Twitter; então o que posto no FB é automaticamente publicado no Twitter, só isso. Quanto aos blogs, tenho especial carinho por eles. Vários são de duração limitada, pois são blogs de acompanhamento da tradução que estou fazendo naquele momento: além da biografia do Van Gogh, há os blogs sobre Walden, Mrs. Dalloway, Ao farol, Como ler literatura, As mulherzinhas, Utopia, Emily Dickinson… Além desses blogs de acompanhamento de tradução, mantenho alguns blogs, também de duração limitada, sobre essas pesquisas bibliográficas que faço: A Coleção Amarela da Globo, A Série Negra, A Coleção Saraiva, BLM - Biblioteca do Leitor Moderno e outros mais. Não vejo, ou não via, essas iniciativas como parte de uma “onda de digitalização” – são espaços muito práticos, muito fáceis de operar, em que posso ir desenvolvendo questões que me interessam naquele momento, e acabam se tornando repositórios de coisas que posso vir a recuperar mais tarde.

O ramo da tradução ainda é um visto como atividade remunerada secundária; ainda há poucas pessoas que se dedicam, como você, à tradução como forma principal ou única de renda. Você acha importante que exista essa dedicação exclusiva para a classe das tradutoras e tradutores de um modo geral?

Não, não creio que seja muito importante. Sou grande defensora do que chamo de “diletantismo” e defensora ainda maior da fundamental importância de traduções acadêmicas feitas por docentes conhecedores daquela determinada área. E falar em “classe” de tradutores/as me parece um tanto abstrato. Não vejo o conjunto das pessoas que exercem o ofício de tradução, mesmo como atividade principal ou exclusiva, como uma “classe” ou sequer como uma “categoria”. Ainda mais se se incluírem intérpretes, dubladores, legendadores, o pessoal de língua de sinais, torna-se um campo quase infinito. Mas talvez quem sabe algum dia venha a se criar uma categoria profissional legalmente reconhecida como tal. A ideia não me entusiasma especialmente, de maneira alguma – mas, como dentro desse amplo universo da tradução em sentido geral trabalho num segmento minoritário, qual seja, a tradução de obras lítero-humanísticas para o setor editorial, nem tenho muito o que opinar.

Em relação ainda à digitalização da tradução, para além de vermos tradutores e intérpretes tomando as redes com podcasts, canais e blogs, também vemos que estão às voltas com um processo de uberização de seus serviços, recebendo encomendas por meio de plataformas semelhantes ao Uber, e vendo seus vencimentos serem achatados em decorrência. A inteligência artificial também é uma aliada ambígua, que, a longo prazo, poderá contribuir com a obsolescência desta e de muitas outras profissões. Como você enxerga a classe dos tradutores frente a esses desafios?

Repito, não consigo ver a soma dos mais variados tradutores, intérpretes, legendadores das mais variadas áreas para os mais variados fins como uma “classe”. De todo modo, essa uberização, como você diz, decorre da maciça terceirização de serviços que se iniciou nos anos 1970-1980. Um grande número de tradutores exerce hoje em dia funções que eram realizadas pelas antigas secretárias bilíngues e trilíngues (uso o feminino, pois era uma profissão ocupada majoritariamente por mulheres). A profissão da secretária executiva, da secretária de diretoria, altamente qualificada, hoje em dia está quase à beira da extinção, em decorrência, justamente, desse processo de terceirização. Então, até é possível que hoje o número de homens realizando tarefas antes realizadas pelas secretárias mulheres seja maior, em termos relativos, do que era trinta ou quarenta anos atrás. Quanto à tecnologia, sim, talvez. Não conheço a área de tradução técnica, comercial e financeira, que, até onde sei, é a que mais utiliza os novos recursos tecnológicos, como programas de tradução, memórias de tradução e assim por diante – se bem que o uso dessas ferramentas de auxílio à tradução parece estar abrindo caminho também na tradução editorial. Mas eis aí mais um assunto sobre o qual não posso falar, pois não estou bem a par.

O não gosto de plágio oferece uma importante contribuição à produção intelectual, denunciando casos de apropriação indevida no meio editorial. Curiosamente, isso é feito de forma extra-institucional: em um país onde a universidade controla o grosso da produção intelectual, uma das defesas mais contundentes dessa produção vem, por assim dizer, de fora, de alguém que se afastou da carreira docente, e que emprega um meio a que as instituições de ensino e pesquisa não costumam recorrer. Como você encara a contribuição do não gosto de plágio não só à tradução, mas à pesquisa e às instituições onde é mais comumente realizada no Brasil?

Por uma série de circunstâncias, o gravíssimo problema das apropriações indébitas de traduções alheias encontrou ouvidos muito receptivos nas instituições acadêmicas. Para essa receptividade, sem dúvida contribuiu muito o fato de que centenas e centenas de traduções espúrias eram, precisamente, de obras utilizadas nas bibliografias de cursos universitários, sobretudo nas áreas de ciências humanas, filosofia, letras e direito: desde Aristóteles, Platão, Santo Agostinho, Descartes, Hume a Shakespeare, Emerson, Marx, Weber, Von Ihering e dezenas de outros autores de presença obrigatória na academia. Assim, houve um maciço apoio de muitas universidades e de muitas centenas de docentes, chocados com a extensão da fraude. Creio que Alfredo Bosi, na época, sintetizou bem o problema: tratava-se de um atentado “à integridade mesma da vida intelectual no Brasil”. Então creio que a contribuição do não gosto de plágio foi reconhecida nas e pelas esferas mais fortemente atingidas por tais contrafações. Não foram poucos os professores – e não só universitários – que, a partir de então, redobraram sua atenção e muitos passaram a adotar a prática sistemática de incluir os créditos de tradução em suas bibliografias de curso, bem como de exigir dos alunos que os incluíssem em seus trabalhos.

Gostaria que comentasse uma impressão pessoal que vou compartilhar. A tradução é uma tarefa de mediação cultural: entrega-se a um público o texto de outrem; nosso ato de fala basilar parece ser: “eis aqui o que Fulana disse em obra tal”. Isso contribuiu para nossa invisibilidade: quem lê Kakfa deseja ler Kafka, não Carone; quem lê Virginia Woolf deseja ler Woolf, não Cecília Meireles ou Denise Bottmann. Assim, embora seja intelectualmente impreciso e desonesto que não se mencione quem traduziu, dar ênfase demasiada ao tradutor também pode gerar uma espécie de quebra de confiança: se Haroldo é mais importante que Homero no Homero de Haroldo, a quem estou lendo? Não vejo solução fácil a essa contradição, e pediria que discorresse a respeito.

Bem, não vejo nenhuma contradição. Pois haverá alguém que julgue Haroldo mais importante do que Homero no Homero de Haroldo? Pode ser, e é, interessante como questão referente ao ofício e à prática da tradução, mas ninguém (a não ser algum estudante com algum projeto de mestrado ou doutorado muito específico ou algum estudioso da prática tradutória ou da produção específica de um determinado intelectual brasileiro), repetindo, ninguém vai ler Kafka por causa do Modesto – vai ler Modesto por causa de Kafka; nem vai ler Woolf por causa da Denise – vai ler Denise por causa da Woolf (no caso da Cecília Meirelles, é possível e até provável que leiam sua tradução de Orlando por causa dela mesma, mas aí é outra história: quem faz isso é porque está interessado na obra da Cecília, na qual se incluem suas traduções). Não vamos inverter as prioridades, os verdadeiros interesses, nem confundir literatura e obras de pensamento com suas várias e múltiplas versões em diferentes línguas: isso fala mais da riqueza da obra original do que de qualquer eventual mérito de suas diversas traduções, fala mais da historicidade e variabilidade das línguas do que das escolhas feitas numa tradução x ou y.

Quanto ao primeiro aspecto que você havia levantado, concordo: tradução também é, ou pretende ser, esse “eis aqui o que Fulana disse em obra tal”. Em certa medida e em alguns aspectos, tradução também é isso, sem dúvida. Agora, mesmo limitando-nos a essa acepção mais restrita da tradução, esse “o que ela disse” vai variar muito: um vai dizer que, naquela passagem, Fulana disse “o tempo estava encoberto”, outro vai dizer que Fulana disse “o dia estava nublado” ou que “as nuvens toldavam o céu”. Ninguém vai dizer que, naquela passagem, Fulana disse “o navio chegou atrasado ao porto”. Mas as escolhas, as soluções, os fraseados já constituem outro assunto, bastante complexo. E daí, entre outras coisas, a dificuldade em decidir o que “de fato” Fulana teria dito.

Agora, se você não se importar, vou comentar um detalhe. Quando você fala em “invisibilidade”, a famosíssima invisibilidade do tradutor, está-se referindo, pelo que entendi, ao papel quase ignorado da atividade tradutória para o acesso à leitura em determinada língua de textos originalmente escritos em outra língua. De minha parte, entendo que a expressão significa um hipotético desideratum, isto é, que a mão, a pena do tradutor não se faça demasiado visível na tradução, e se aplica em oposição àquelas traduções geralmente muito decalcadas ou com muitos cacoetes desnecessários. Até onde sei e até onde consigo lembrar, foi apenas a partir de Lawrence Venuti que se desenvolveu ou se passou a divulgar aquela outra acepção quase, digamos, vitimista do pobre tradutor que tanto trabalha, tanto se esfalfa e ninguém vê – e Venuti até recomenda que o tradutor calque fortemente a mão para se fazer bem visível e deixar bem evidente que aquilo é uma tradução. Bom, não é de Venuti que estamos falando e deixemos isso de lado. Gostaria apenas de comentar que entendo a “invisibilidade do tradutor” naquele outro sentido, a meu ver mais preciso e mais objetivo, de um trabalho que não reproduza mecanicamente estruturas sintáticas próprias da língua original ou outros “vícios” do ofício, nem se exiba demais com um cartaz dizendo – ou nem precisando de cartaz nenhum, mas simplesmente alardeando: vejam, vejam, isso é uma tradução! Agora, que da invisibilidade do tradutor, nessa acepção que considero mais objetiva, se possa inferir que, então, o tradutor não deixa, não pode, não deve deixar sua marca pessoal... bom, são outros quinhentos. Seria uma tolice imaginar isso, e felizmente, ao que parece, as correntes tradutórias mais normativistas vêm deixando de lado algumas noções um tanto fantásticas como, por exemplo, a de “equivalência”. Eu proporia, só para não parecer muito implicante e para fazer um pouco de graça, algo como “a marca invisível” ou “a marcada invisibilidade” ou, ainda, “a marcante invisibilidade do tradutor”, naturalmente denotando um valor positivo.


Para saber mais sobre Denise Bottmann

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